João-Gilberto-Gil

Homenagem do músico da Tropicália ao baiano da Bossa Nova é indispensável para um estudo da música brasileira

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Saio com minha esposa e meu enteado do Theatro Net, em Copacabana, Rio de Janeiro por volta das 23h. Nas quase duas horas que antecederam nossa saída na noite morna do outono carioca, estivemos na presença de um trovejante Gilberto Gil, que, no palco do velho Teatro Tereza Raquel (devidamente reformado e rebatizado) realizara a terceira apresentação de seu novíssimo show, Gilbertos Samba. Gil lançou há poucos dias o disco homônimo com um objetivo muito simples: pagar tributo ao repertório de canções de João Gilberto, o sujeito louco, genial e genioso que ousou dar voz a uma multidão de não-cantantes, a bordo de um ritmo que se insinuara na mesma noite carioca do fim da década de 1950, conhecido como Bossa Nova.

Não é exagero dizer que João inventou a maneira de tocar a Bossa no violão, algo que soava harmonioso e percussivo ao mesmo tempo e em doses iguais, algo que pode ser banal em 2014, mas que soava como uma Revolução Francesa em 1959. Tal mudança, oriunda da fusão de elementos do Samba com algumas inflexões do Jazz, não chegou a ser popular em nenhum momento, pelo menos, não no Brasil, mas serviu para mostrar uma imagem do país no exterior, algo que era passível de orgulho, um mix de beleza natural, gente bonita e cordial além de música boa, num pacote sensorial/estético, que se mostrou irresistível para americanos, japoneses e europeus, que, até hoje, pensam que o país não mudou nada. Em território nacional, no entanto, a Bossa Nova atingiu poucos e bons ouvintes, que enxergaram as possibilidades que ela apresentava, gente como Caetano Veloso e Gilberto Gil, cada um em uma região da Bahia, terra natal de João Gilberto, que já transitava com razoável desenvoltura no Rio de Janeiro àquela altura.

Gilberto Gil, com dezessete anos em 1959, fazia parte de um grupo chamado Os Desafinados. Deixou o arcordeon e o vibrafone de lado e passou a dedicar-se mais ao violão. Como sempre foi exímio instrumentista, Gil conseguiu emular a sonoridade da Bossa Nova em pouco tempo. Filho de um médico e uma professora, sempre foi um filho da classe média. Cursou Administração de Empresas na UFBA, formou-se, conseguiu emprego na Gessy Lever e, em meados dos anos 60, morava em São Paulo com sua primeira esposa, Belinda. Nunca deixou a música de lado, até que, em pouco tempo, ela já consumia mais tempo de seus dias. Tendo conhecido Caetano Veloso, Chico Buarque, Capinam, Tom Zé, entre vários outros jovens artistas, Gil receberia o convite para gravar seu primeiro compacto, Procissão, em 1967. Deste momento até 2014, sua carreira é marcada por um traço constante: inovação. Só isso explica o formato que Gilbertos Samba, o disco, tomou.

São doze canções, duas inéditas, compostas por Gil especialmente para o lançamento do álbum, Gilbertos e a instrumental Um Abraço No João, resultado da clássica Um Abraço No Bonfá, standard instrumental do repertório de João Gilberto. Das dez restantes, apenas Eu Vim Da Bahia é da lavra de Gil e foi a única canção sua que João Gilberto gravou, mais precisamente, em 1973, no chamado Disco Branco, em que João fez sua interpretação definitiva para o clássico Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Essa interseção entre os dois Gilbertos é o ponto de ligação entre o passado bossanovista e a modernidade de Gil. Com este disco, o compositor baiano consegue religar Bossa Nova e modernidade, palavras que andavam juntas quando o novo estilo musical surgiu mas que se separaram por conta de vários fatores ao longo do tempo. A presença de convidados como Moreno Veloso (que produz o disco ao lado de Bem Gil), Domenico Lancellotti e Mestrinho (que também se apresentaram ao lado de Gil no palco do Theatro Net) garante o frescor instrumental necessário para que Gilbertos Samba não seja uma mera recriação voz/violão de canções do passado, o que já seria belo, dadas as habilidades vocais e instrumentais de Gilberto Gil. O resultado, no entanto, é outro, um disco novo e que pretende, sutilmente, arremessar as canções do repertório de João Gilberto para o presente, devidamente encrocantadas pela ação de efeitos de guitarra, percussão surpreendente, bateria discreta mas marcante e sanfona, revestindo tudo com a influência musical original de Gil: o baião.

Pequenas pérolas surgem revistas, como Aos Pés da Cruz, composta em 1942 por Marino Pinto e José Gonçalves, que ganha novos coloridos percussivos e a interpretação brejeira do mestre baiano. Outra canção do passado que surge revigorada é O Pato, de Jayme Silva e Neuza Teixeira, que era parte integrante do clássico álbum O Amor, O Sorriso E A Flor (1960). A interpretação atemporal de João Gilberto não pode ser igualada, uma vez que a letra da canção é uma adorável homenagem aos conjuntos vocais, tão em voga nos anos 40/50. Ouvir uma voz com a de João fazendo homenagem a esta instituição musical que a própria Bossa Nova estava aposentando, é um verdadeiro looping temporal. Outro clássico revisto é Tim Tim Por Tim Tim, de Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques, foi gravada por João em Amoroso, seu irrepreensível disco de 1977. Gil pega o original e transforma num semi-baião, com destaque para a interação sanfona/flauta, que expande o horizonte da canção, levando-a da Zona Sul do Rio para o Sertão da Bahia. A marca registrada de João, Desafinado, também é revista com coragem por Gil, dessa vez numa interpretação que parece respeitosa, mas que é invadida por uma discreta barulheira distorcida de efeito de guitarra, urdida por Bem Gil, que dá a característica atonal insinuada pela letra e atitude joãogilbertiana.

Desde Que O Samba É Samba é canção de Caetano Veloso (outro filho musical de João Gilberto), gravada com Gil no álbum Tropicália 2, de 1993. A levada original, mais próxima do samba clássico, é levemente subvertida para o universo da Bossa Nova, devidamente turbinada por bateria de aro e percussão discreta, que inclui um surdo de marcação. Outro colosso de beleza praiana é Você e Eu, parceria de Vinícius de Moraes e Carlos Lira, também atualizada pela interpretação de Gil, com arranjo de Rodrigo Amarante. Milagre é canção praiana de Dorival Caymmi, outro ponto de ligação entre os Gilbertos, gravada por João em Brasil (1981), disco com Caetano, Gil e Maria Bethânia. Doralice, outro clássico, surge reluzente na nova versão, estabelecendo um insuspeitado parentesco com a Berenice de Jorge Ben. Gil permite um elegante contraponto de sanfona em sua interpretação, que também parece prestes a cair na fronteira que divide Samba e Baião, mas mantém a canção na orla de uma Copacabana ideal.

Gilbertos Samba, o disco e o show, são atestados de inquietação artística desse jovem de 72 anos. Gil é hábil o bastante para cativar o público ouvinte do disco e espectador do show na mesma medida, via carisma e humildade. No palco, à medida que o espetáculo adentra pelos clássicos, é latente a animação que toma conta dos músicos. Ainda há espaço para uma versão arrebatadora de Chiclete Com Banana, gravada por Gil em Expresso 2222, seu disco de retorno ao Brasil, vindo do exílio londrino em 1972, e Máquina de Ritmo, novíssima composição sobre a tecnologia, tema que é querido e já abordado em outras canções tão distantes no tempo como Lunik 9 (1968) e Pela Internet (1998). Seria, como já foi dito, mais fácil para Gilberto Gil gravar um disco confortável de releituras seguras da Bossa Nova de João Gilberto, mas, ao que tudo indica, é impossível que Gil não soe moderno sempre. Um mestre que homenageia outro.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.