Brian Wilson: Um Sorriso De Muitos Anos

Recriação de “Smile” pelo “Beach Boy” faz dez anos

Loading

Há dez anos, Brian Wilson encerrava uma história mítica do Rock: a conclusão das gravações de Smile, álbum abortado de The Beach Boys, por conta de um coquetel explosivo de estafa, drogas e maluquices mil. De quem? Do próprio Brian. A gente explica melhor.

Muito se fala sobre a importância de Smile, o disco com o qual The Beach Boys pretendia fazer frente a Revolver e Sgt.Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado por The Beatles em 1967. Era um tempo de saudável competição entre as bandas. Brian Wilson e Paul McCartney, os integrantes mais preocupados com o aspecto musical e artístico de suas respectivas formações, se admiram até hoje. McCartney chegou a declarar várias vezes que God Only Knows, canção de 1966, incluída em Pet Sounds, obra psicodélica e genial de Wilson e banda, era sua preferida em todos os tempos. Brian também exaltou as criações dos quatro rapazes de Liverpool sempre que pode. O fato é que Wilson sempre teve uma genialidade musical incontida. Por algum tempo ela se adaptou ao formato de banda proposto pelo próprio Rock quando estourou no início dos anos 1960. Ainda assim, a identidade sonora de sua banda era, por assim dizer, genial. Misturava sons da chamada Surf Music com vocalizações que tinham origem do Doo Wop, estilo vocal dos negros de cidades americanas bem distantes da California ensolarada que emoldurava as andanças de The Beach Boys. Quando lançou seu primeiro disco, Surfin’ Safari, ainda em 1962.

Em apenas quatro anos, a evolução do próprio Rock foi impressionante e a banda de Hawthorne já contabilizava onze álbuns lançados. À medida que o tempo passava, as criações de Brian, seus irmãos Dennis (bateria) e Carl (guitarra), bem como do amigo Al Jardine (guitarra) e o primo Mike Love nos vocais junto com todos os integrantes do grupo, adquiriram ares de obra de arte. Além de uma visão própria da música Pop de estúdio, lapidada por produtores como Phil Spector e Joe Meek, Wilson também tinha suas próprias ideias geniais. Tal ambição de tornar o Rock algo mais “sério” e “artístico” era uma preocupação latente, que tornou-se maior quando ele ouviu Rubber Soul, lançado por The Beatles, no natal de 1965. A banda de Liverpool mudara completamente sua abordagem sonora, abrindo-se às influências Folk, de Bob Dylan e indianas, objeto de interesse de George Harrison, pavimentando um caminho ousado e inédito na música jovem da época e que forneceu a Brian Wilson a certeza que era possível juntar arte e Rock na mesma frase.

Para o pessoal que se aventurou no estilo até a primeira metade da década de 1960, havia uma certeza: o Rock não era para ser levado a sério sob o ponto de vista artístico. Significava algo imediato, ingênuo, simplório e outros adjetivos depreciativos. O décimo primeiro álbum de The Beach Boys, Pet Sounds, surgiu para sinalizar o contrário. Era possível juntar conceitos, ideias, instrumentos exóticos e mesmo encadear as canções em formatos antirrádio para que formassem um único painel, valendo-se da liberdade proporcionada pelos cerca de 40 minutos do LP. Se até então, o Rock era dos singles, com Pet Sounds, ele passou a ser maior, mais amplo e capaz de abrigar novidades. Do outro lado do Atlântico, Paul McCartney e o produtor George Martin, ouviram a criação de Wilson e ficaram pasmos. Por mais que Rubber Soul fosse um disco sem canções tapa-buraco, ele não era algo que poderia se chamar de “conceitual” ou mesmo tinha qualquer intenção neste sentido. Veio então Revolver, para muitos, o melhor álbum lançado pela banda inglesa. Há já uma mínima noção de conceito ao longo do disco e canções que romperiam fronteiras como Tomorrow Never Knows, até hoje um marco das gravações em estúdio. Mais que isso, a noção passada por Pet Sounds impregnou totalmente as gravações e The Beatles se viram às voltas com um compacto duplo, que anteciparia Sgt Pepper’s. De um lado estava Strawberry Fields Forever, do outro, Penny Lane. Ambas diferentes de tudo o que haviam feito até então.

Enquanto isso, Brian terminava a última canção prevista para ser lançada em Pet Sounds, Good Vibrations. Considerada um dos maiores singles de todos os tempos e com gestação longuíssima no estúdio, a música antecipou o que estava por vir. Brian Wilson ouviu Revolver e notou que era possível expandir ainda mais as fronteiras criativas. Seu desgaste com o grupo já era imenso, uma vez que os quatro restantes assumiram as excursões enquanto Brian decidiu não mais tocar ao vivo e dedicar-se totalmente às criações em estúdio, além de convocar músicos mais tarimbados para executar as canções, restando aos integrantes da banda as vocalizações, postura que ele já adotara em Pet Sounds. A ideia de Brian era fazer um disco tendo como tema o equivalente sonoro da conquista territorial americana rumo ao Oeste no século XIX. Além disso, ele pretendia adicionar canções que simbolizassem os quatro elementos e um fecho melancólico. Nada disso, no entanto, deveria ser executado de forma normal e ele aproveitaria para colocar em prática seu gosto por música clássica, trilhas sonoras de desenhos animados (principalmente dos Estúdios Disney), além de tangenciar o folclore americano e mesmo ritmos havaianos. Mais que isso: convocou o letrista Van Dyke Parks para prover as palavras necessárias para sua aventura musical.

Após uma estressante rotina de gravações, que ocorriam sob o crivo duríssimo e perfeccionista de Brian, Smile tornou-se um monstro. As ideias, as canções, os arranjos, a pressão, desentendimentos com a banda, com a gravadora, tudo ao mesmo tempo pendeu sob a cabeça já confusa de Brian Wilson, que, sem outro termo melhor para definir, surtou. As sessões de gravação foram interrompidas e Wilson foi, digamos, afastado da banda por conta de seu estado. Carl Wilson e Mike Love assumiram o controle criativo do grupo e providenciaram a retomada das gravações, mas não de Smile, desde o início um projeto mais pessoal que coletivo. O que veio às prateleiras antes da retomada da rotina de composições sem Brian Wilson foi lançado com o nome de Smiley Smile. E aqui fazemos um corte.

Brian permaneceu refém de sua condição de saúde por muitos anos. De músico brilhante e visionário, ele passou à condição de sobrevivente de seus excessos, perdido ao longo dos anos seguintes, entre 1967 e meados dos anos 1980, entre terapias e tratamentos que, ora deram esperanças à família e amigos, ora acenavam com as mais pessimistas previsões. Em 1988, após participações esporádicas em alguns álbuns de sua antiga banda, Brian Wilson lançou seu primeiro álbum homônimo, iniciando uma improvável carreira solo, que já dura 26 anos. Quando corria o ano de 2004, ele e sua Brian Wilson Band, entraram em estúdio para acertar contas com a História e terminar as gravações de Smile. Como já haviam demonstrado, os músicos que Wilson escolheu para acompanhá-lo ao vivo e em seus discos, eram da mais alta competência. Gente como Darian Sahanaja (cujo grupo, Wondermints, serviu como embrião da própria banda) e Jeff Foskett, além de fãs das aventuras sonoras de The Beach Boys, tocavam vários instrumentos e reproduziam com perfeição os arranjos vocais que o próprio Brian já não podia executar com a mesma perfeição de antes. Vieram então à luz uma série de composições gravadas precariamente ou de forma incompleta por conta da interrupção das sessões de Smile em 1967. Heroes And Villans, Wonderful, Cycle Of Life, a suíte The Elementals formada por Vega-Tables (Earth), Wind Chimes (Air), Mrs. O’Leary’s Cow (Fire) e In Blue Hawaii (Water), alguns instrumentais que oscilam entre a psicodelia e as canções infantis, como além da maravilhosa canção de encerramento, Surf’s Up, com uma letra quase parnasiana de Van Dyke Parks.

Em 2011 foi lançado finalmente The Smile Sessions, a partir das fitas originais das sessões abortadas de gravação. Em vários formatos e com uma quantidade imensa de informação, o mito sobre Smile é devidamente tratado e alvo de imenso respeito, com uma questão que permanecerá sem resposta: qual seria o efeito do lançamento de um disco como Smile em 1967, mesmo ano de Sgt Pepper’s? O que ele teria feito pela música Pop e pela procura do Rock por respeito artístico? Ouvindo as canções e percebendo o encadeamento de ideias, posso arriscar que o resultado parece inferior a Pet Sounds em termos de coesão e talvez a multiplicidade de influências, ideias e conceitos atrapalhe o resultado final. Provavelmente seria o topo criativo de Wilson neste terreno, cabendo a ele (assim como coube a The Beatles nos álbuns pós-1967) iniciar uma jornada de retorno às origens de uma forma mais simplificada de Rock, no sentido de “ok, provamos que podemos fazer arte, agora vamos voltar ao normal”. Não dá pra cravar nada neste sentido.

Smile, seja na versão de 2004 ou na de 2011, é um marco musical de um tempo em que jovens de vinte e poucos anos entravam em estúdio e produziam, dentro da engrenagem da indústria musical, obras de arte. Foi um desses momentos em que o artista recebeu carta branca para fazer o que quisesse, chegando a ser vítima desta própria condição. É um fato histórico e uma pequena conquista para o século 20. Sem qualquer exagero.

Loading

MARCADORES: Aniversário

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.