Futura: O Meio Do Caminho Da Nação Zumbi

Dez anos do lançamento de Futura marca afirmação da banda aqui e lá fora

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Nem lá, nem cá. Essa era a posição geográfica que Nação Zumbi se encontrava em 2004/5. Com dez anos de carreira, livrando-se do trauma da perda de seu líder Chico Science em fevereiro de 1997, por conta de um acidente automobilístico, o grupo recifense encontrava, finalmente, sua feição mais bem definida e arrancava rumo ao futuro com um álbum decisivo, chamado Futura, que olhava para frente, reservando pouco espaço para regurgitar influências. Àquela altura, Jorge DuPeixe e seus amigos já sabiam exatamente onde e como colocariam em prática suas diretrizes de música brasileira universal nordestina, tudo ao mesmo tempo e de uma vez só.

Com Chico no comando do grupo, lá nos idos de 1991, quando surgiu em Recife, era possível pensar que Nação Zumbi estaria fadada a ser uma dessas bandas que só têm o nome publico após o do cantor/integrante principal, no estilo de Tom Petty And The Heartbreakers, por exemplo. A música popular está cheia de histórias assim, não restando opção a não ser a própria imaginação a partir do que Chico e o grupo faziam na época do surgimento. Era uma música moderna e negra, acima de tudo, que foi batizada por eles mesmos e por Fred Zeroquatro, líder de mundo livre s/a, outra formação da mesma cena, como Manguebeat. Em essência, podemos entender o estilo como uma apropriação de informações musicais de ritmos como Reggae, Hip Hop e música eletrônica em geral, por parte desses jovens músicos da capital pernambucana, com o intuito de olhar para frente. Desse conceito reempacotador de tendências estrangeiras – usual na música popular brasileira de tempos em tempos – veio a sonoridade pioneira dos grupos e artistas de lá. Com Da Lama Ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), Nação Zumbi deu o passo adiante no movimento, aglutinando o leque de influências e misturando com o estilo personalíssimo de Chico, que tinha tudo para se tornar a grande referência histórica do período, não tivesse sua carreira encerrado de forma tão brusca.

Com a morte do líder, a banda interrompeu atividades e optou por continuar na ativa, num ato de grande coragem. Ainda que houvesse certeza de algum movimento por parte da gravadora Sony de resgatar e aproveitar gravações ao vivo ou mesmo inacabadas, a decisão de continuar com a carreira significou um recado bem claro, o de que a matriz criativa da banda não estava encerrada com a morte de Chico. Jorge Du Peixe, um dos responsáveis pelas alfaias (uma espécie de tambor) do grupo, assumiu os vocais parcialmente quando o disco CSNZ foi lançado em 1998. Era um álbum duplo, cheio de gravações alternativas e remixes, colocado no mercado com o intuito de estabelecer a conexão entre o passado recente da banda e apontar para o futuro, acenando com a continuidade da carreira. A busca por uma nova identidade longe de Science gerou dois álbuns interessantíssimos, híbridos e tortos no melhor sentido, o eletrônico Rádio S.Amb.A (2000) e o orgânico Nação Zumbi (2002), nos quais é possível ver os músicos tateando no escuro do estúdio para encontrar sonoridades que sustentassem a banda e que, ao mesmo tempo, fossem capazes de enfrentar as mudanças que a própria música popular mundial começava a sofrer por conta do avanço da Internet como ferramenta no processo de criar/produzir/consumir arte e, ao mesmo tempo, agente direto do colapso da indústria musical como existia até então.

Futura, lançado em 2005, é a síntese dessas experiências já devidamente incorporadas ao ideário de Nação Zumbi, devidamente convertidos em elementos vitais. É um álbum plural e cheio de promessas que se concretizam logo na primeira audição. Também é internacional e credenciado para se tornar representante fidedigno em meio a uma tradição musical negra e universal, capaz de traduzir e produzir discursos daqui para lá, de lá para cá, tudo junto e misturado. É quase a expressão moderna do conceito do Atlântico Negro em forma de música e, como tal, genuinamente transnacional. A presença do americano Scotty Hard na produção já aponta para isso. Responsável pela mixagem do álbum anterior e piloto de estúdio de discos clássicos do Hip Hop como De La Soul Is Dead, de De La Soul, e Wu-Tang Forever, de Wu-Tang Clan, Hard era o elemento capaz de fornecer o olhar de fora para dentro em relação à proposta sonora da banda, que buscava a afirmação no mercado nacional, mas também a consolidação de uma carreira no além mar. O mais interessante é que a presença de Scotty não sentencia Futura a ser um álbum de Hip Hop, pelo contrário, talvez seja o conjunto de gravações menos eletrônicas da carreira da banda, mas sim um álbum impossível de ser rotulado. O protagonismo de Futura está a cargo da usina percussiva da qual a banda sempre dispôs, personificada no escrete composto por Toca Ogan, Gilmar Bolla 8, Pupillo, Marcos Matias e Da Lua, todos jogando dentro de um bem urdido sistema tático que, mesmo moderno e plural, direciona a abordagem sonora para os terrenos setentistas da música negra. Com a curiosidade de um bem aplicado aluno brilhante, Nação Zumbi se permite visitar ritmos como o Afrobeat, o Funk e o Samba-Rock, que, por si só, são filhos dessa expansão diaspórica negra da segunda metade do século 20, que atingiu em cheio a nossa vida.

DuPeixe, o baixista Dengue e o guitarrista Lucio Maia também estão nessa busca de ancestralidade recente, conectados e respeitosos com o todo. Canções como A Ilha e Voyager são pesadas e delicadas ao mesmo tempo, enquanto Vai Buscar é capaz de evoluções na pista de dança extemporânea e Hoje, Amanhã e Depois reivindica algum parentesco com latinidades não imaginadas. Mas, claro, há surpresas no caminho que se abre ao ouvinte. Evocando uma admiração por Roberto Carlos (já assumida na versão de Todos Estão Surdos, lançada no tributo Rei, em 1995), Nação Zumbi meio que dá outra versão para alguns elementos da canção robertiana clássica em Na Hora De Ir, todos devidamente afundados num mar percussivo e elétrico, com direito a participação guitarrística de Catatau (Cidadão Instigado). Há outras participações em Futura: Sem Preço tem sopros pensados e executados por Maurício Takara (Hurtmold), Kassin adiciona eletrônica de game portátil em O Expresso da Elétrica Avenida.

Lançado pela gloriosa gravadora Trama, o álbum teve bom desempenho nacional e internacional, levando a banda a se apresentar no programa de Jools Holand, na BBC, com versões pesadas e psicodélicas de Propaganda e Meu Maracatu Pesa Uma Tonelada, faixas do disco homônimo anterior a Futura, fato que coroou a busca de reconhecimento livre de comparações com o passado, bem como revelou o grupo para uma audiência ainda mais nova e curiosa. Nação Zumbi segue em frente, sempre querida por seu público e respeitada pela crítica, fornecendo em seus álbuns preciosas versões da interação interracial no terreno estritamente musical, misturando, conectando, reprocessando para, quem sabe, no futuro seja possível documentar esses tempos tão cromáticos de hoje. Futura, com dez anos de idade, ainda é um menino brincando num mangue universal.

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ARTISTA: Nação Zumbi
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.