Música Pop e Feminismo: Combinam?

Algumas artistas não deixam a causa virar discurso publicitário

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Não sei se é impressão ou pessimismo, mas a música popular vive uma fase em que discursos políticos e opiniões pessoais não são o item mais valorizado. Parece que a canção de protesto é algo do passado, que o presente deve ser vivido da maneira mais intensa possível, de modo a não precisarmos tanto do futuro. A existência parece encapsulada em três minutos ou numa noite, talvez numas férias de verão. Tudo leva a crer que o pensamento dominante é egoísta, na base do “depois não importa, contanto que eu me dê bem” e ponto final. Os discursos, as opiniões, os pontos de vista, quando existem e clamam por algo que não está presente na sociedade, ou seja, que demanda ou demandará esforço e movimentação para acontecer, simplesmente beiram a utopia. Dentre essas questões, especialmente a igualdade racial e de gênero se apresentam como causas majoritárias. Mesmo assim, parece que a Internet surgiu como um terceirizador de discursos, como um âmbito relativamente seguro, onde estas demandas vão existir, mantendo-se distantes da realidade. Sendo assim, podemos clamar pelo que quisermos, parece que o âmbito virtual sempre será muito difícil de romper, mantendo-nos como os habitantes daquela cidade do seriado Under The Dome. Ou será um exagero de pessimismo de minha parte? O feminismo, carro-chefe das questões referentes à igualdade de gênero, teria espaço na canção popular de hoje? Se tivesse, como ter certeza que o artista sabe o que está falando?

A dúvida procede em tempos tão líquidos e capazes de tornar quase tudo uma demanda comercial/publicitária a ponto de discursos e ideias sérias, que envolvem uma tradição de luta e questionamento, poderem surgir em qualquer lugar de forma bastante contraditória. Antes de pensar no que escrever sobre o assunto, dei uma pesquisada aqui e ali e constatei que o feminismo de outrora, aquele que levou mulheres às ruas nos anos 1960 para clamar pela pílula anticoncepcional ou mesmo o direito de voto, parece meio desconectado desta realidade de 2015, quase 2016. Ainda bem, penso com meus botões. Mas há o que comemorar em termos específicos de igualdade entre homens e mulheres no planeta? Digo em termos de salário, de respeito, de oportunidades, de tudo. Se o tema ainda é válido e se justifica pelas infelizes estatísticas de agressões, abusos e assédios de todas as naturezas possíveis, o que fazer para que tais demandas tenham ressonância? Sei bem que a internet tem o poder sensacional de difundir ideias e oferecer informação em velocidades estonteantes, porém, isto, por si, é o suficiente para fazer alguma questão ser abordada de forma eficaz? E o tão propalado empoderamento?

Digo isso porque, dentre as realizações recentes do showbiz no âmbito das questões de gênero, a presença de Beyoncé se apresentando no Video Music Awards em 2014, parece ser unanimidade planetária. Penso, cá com meus botões imaginários, se a riquíssima e poderosíssima estrela multitarefas teria, de fato, na boa, de verdade, algum viés feminista.

Vejam, não vou pensar em termos de alguém que pede pelo direito de tomar pílula ou pela liberdade de pedir o divórcio de um cônjuge não adequado, mas na dura e atual batalha pela igualdade entre machos e fêmeas. Temos que falar em legitimidade? Eu acho que sim. Uma olhadela na obra da “Queen Bee” nos mostrará um compêndio de canções anódinas e com letras que não vão muito além do banal. Mesmo assim, do nada, Beyoncé surgiu para o público do VMA, com um letreiro enorme por trás, com a palavra Feminist escrita em letras brilhantes, e se apresentou por quase 20 minutos, cantando, entre outras, Flawless, a canção que traz trechos do discurso da ativista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, sobre o assunto e outros tipos de igualdade entre as pessoas. Foi o suficiente para que muitos pensassem em sua conversão à causa, algo que não parece exatamente verdade, mas, se olharmos com mais carinho, veremos que o gesto tem, sim, bastante relevância. Pensem na quantidade de jovens ouvintes e admiradoras da cantora que, pela primeira vez, se debruçaram sobre a Internet para pesquisar algo sobre o assunto. Em números recentes, Beyoncé parece ser a terceira artista mais popular do planeta e a sexta em audiência no iTunes, ou seja, não é qualquer iniciante, mesmo que exiba uma imagem à beira da perfeição e à prova de falhas, seu engajamento, mesmo superficial, é bem vindo.

Antes disso, pelo menos em tempos atuais, havia pouco ou nada sobre o assunto nas canções Pop ao redor do planeta. Lily Allen é exceção, Miley Cyrus também. Miley, aliás, é mais eloquente sobre o assunto que a própria Beyoncé. Lady Gaga já não parece tão engajada. Katy Perry também não tem o assunto como pauta principal, mesmo caso de sua concorrente direta, Taylor Swift. Lana Del Rey, então, ostenta uma postura totalmente contrária à de uma mulher em vias de brigar por alguma questão. O importante no tema voltar ao ideário Pop é que – e isso é uma faca de dois gumes – ele pode ser ressignificado. Ou melhor, reempacotado. É fenômeno típico de uma sociedade midiática, não se espantem, e as próprias Beyoncé e Miley exibem contradições fundamentais em seus discursos. São duas artistas que não hesitariam em usar o conceito de feminismo, suas questões e demandas, como algo rápido, rasteiro, distante de uma causa a ser abraçada. Mais ou menos como os “identkits” a que Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, se refere. O conceito é de um “kit de identidade” ao pé da letra, algo que podemos adotar em nossas vidas sem muito envolvimento, mas que se torna relevante numa convivência superficial. Como uma tintura ou corte de cabelo. Como um livro que lemos. Como uma música que ouvimos. E, acima de tudo, como algo que pode passar rápido e não deixar traços. Teríamos então a possibilidade de ver um conceito como o feminismo sendo utilizado en passant como um integrante do repertório de assuntos que usamos no trato social mas que não necessariamente é alvo de análise mais séria de nossa parte. É um risco a se correr, uma vez que essas cantoras e artistas que enveredam pelo caminho do assunto, de fato, têm um alcance planetário.

Longe de parecer que desmereço o suposto engajamento dessas moças em alguma causa que não seja sua própria carreira e a possibilidade de torná-la sempre mais lucrativa com o mínimo de risco, opto por dar duas sugestões atuais e legais para vocês se aventurarem na seara do feminismo em forma de canção, com letra, música e muito mais a oferecer. Sim, claro, você pode ir em outra época e ouvir gente que vai de Billie Holiday a Aretha Franklin, passando por Patti Smith, Pitty, Alanis Morrisette ou Rita Lee, nada te impede. Se quiser, porém, algo atual, recomendo as obras da rapper franco-chilena Ana Tijoux, da cantora canadense Grimes e do sensacional grupo americano Sleater-Kinney. Não são gente monotemática, mas não se furtam a abordar o problema de igualdade de gêneros e o fazem sem exibir danças olímpicas e sensualidade exacerbada. Parecem gente como a gente e são essas pessoas que mudam o mundo. Busquem se informar, conheçam, arrisquem. A causa é nobre e podemos fazer nossa parte. Sempre.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.