Jens Lekman, o Contador de Histórias (Reais)

Novo projeto do cantor e compositor sueco explora narrativas verdadeiras dos fãs

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Não parece, mas já se vão quase dez anos desde que vi Jens Lekman ao vivo no Rio, mais precisamente, no Teatro Odisseia. Era um festival de artistas suecos, melhor dizendo, escandinavos, pois, além de Jens e do projeto El Perro Del Mar, o noruguês Erlend Oye também esteve presente, numa noite memorável de bons shows. Lembro que Lekman estava com a corda toda na época, incensado pela mídia especializada como uma espécie de cruza entre a poesia mordaz de Morrissey com a doçura de Belle & Sebastian. Mesmo que tais comparações façam sentido, o sueco vai além de ambos, exibindo algo que é raro: senso de humor. Mas vejam, não é senso de humor do século 21, essa coisa escalafobética americana qualquer nota, Jens exibe uma finíssima ironia, uma capacidade de tirar sarro com a maior cara de pau e seu objeto preferido é o cotidiano, mais precisamente, as pequenas e triviais situações da rotina das pessoas. De quebra, Jens Lekman ainda é capaz de compor melodias que poderiam ser de um Burt Bacharach adolescente. É um monstro.

Treze EPs e quatro álbuns depois, ainda acompanho com carinho a evolução do trabalho dele, feliz em ver que seu estilo não mudou com o tempo. Tal fidelidade ao mundano e “banal” das relações serviu de combustível para o novíssimo projeto, o show Ghostwriting, que transformou-se em EP. Há algum tempo que Lekman mantem sua série Postcards, na qual publica em seu site, semanalmente, uma nova canção. Com o novo projeto, ele ampliou mais ainda este conceito, chegando ainda mais perto de sua crescente base de fãs ao redor do mundo. Em setembro deste ano, ele anunciou que estava à procura de histórias reais de seus admiradores para musicá-las, numa parceria com a Bienal de Gotemburgo, sua cidade natal. Dentre várias narrativas enviadas, cinco foram escolhidas e publicadas no site.

Do outro lado do Atlântico, Drew Klein, curador do Contemporary Arts Center, de Cincinatti, no estado americano de Ohio, adorou a ideia. Entrou em contato com a produção de Lekman e acertaram que dariam chance para mais gente participar. Novamente os fãs escreveram e-mail contando uma história real de suas vidas, num total de 126, das quais 12 foram selecionadas. Estas pessoas foram contatadas pela produção, encontraram com o cantor/compositor e este elaborou letra e música sobre as escolhidas. Cada participante ganhou um pendrive com a gravação – feita na hora, com banda, num estúdio – e as canções foram incluídas no setlist apresentado por Jens em Cincinatti. Agora as cinco canções originais de Gotemburgo chegam ao formato de EP, coroando o êxito da empreitada.

Do EP com as primeiras histórias transformadas em música, surgem pequenas pérolas de um estilo de composição quase extinto. Há muito do Pop clássico americano dos anos 1940/50, resquícios de Bossa Nova, de melodias presentes num imaginário popular do século 20, coisas muito bonitas e com arranjos singelos. As letras foram escritas em sueco, mas há tradução para o inglês no site de Jens, o www.jenslekman.com/ghostwriting . As narrativas podem ir das metáforas, como em Wooden Ships, enviada por Catarina Salo, na qual ela descreve seu medo de grandes navios antigos, que ela viu em um museu de Estocolmo e começou a pensar que estava entrando em contato com vidas passadas em meio a um ataque de pânico. Para esta experiência, Jens construiu quase uma canção de ninar ao piano e violão, contrastando a aflição/inquietação com doçura, desconcertando o ouvinte. Já My Dad Is Dead, a história de Andrea Jernberg é mais profunda e séria, sobre a morte de seu pai quando ela tinha 15 anos. A letra lembra do ano anterior, quando ela vê o pai ouvindo e dançando na sala, ao som de um álbum do grupo inglês T.Rex. Ela acha ridículo, sente vergonha, mas depois (e para sempre) se lembra da ausência dele apenas com esta cena, que muda de valor à medida em que a saudade aumenta.

A história enviada por Daniel Atala Labbé, The Sorcerer, trata de homossexualidade através do preconceito que enfrenta em sua própria família, do qual ele foge jogando videogame, no qual ele pode ter um romance com outro homem (no caso, um feiticeiro) sem que ninguém perceba. Aos poucos ele cria coragem e conta para seus parentes e estes o aceitam normalmente, significando um novo começo para todos. As narrativas são extremamente verdadeiras, uma ampliação do conceito de storytelling, emocionantes mesmo. As duas últimas narrativas são anônimas, falando de amor em diferentes pontos de vista, através de outra canção, no caso, It Must Haver Been Love, dos conterrâneos Roxette e das possibilidades dos relacionamentos vividos de forma virtual, pela Internet.

O EP Ghostwriting está disponível para audição no site do cantor e as canções da leva de Cincinatti foram apresentadas no dia 20 de novembro, no Woodward Theater, em cujo palco Jens Lekman subiu acompanhado pelo My Cincinatti Ambassador Ensemble, uma orquestra de cordas. Há o fio de esperança que ele mantenha tal lógica de composição em atividade por algum tempo, quem sabe recebendo novas sugestões e histórias para compor, quem sabe abrindo o leque para admiradores de todo o mundo. Quem sabe já não é hora de você começar a escrever a sua? Vai que…

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ARTISTA: Jens Lekman
MARCADORES: Novo EP, Novo Projeto

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.