Para Sempre Bowie

Morte do cantor é perda irreparável para música

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Acabo de acordar e vejo notícia da morte de David Bowie. Por uma dessas ironias do cotidiano, ontem estive escrevendo resenha de seu novíssimo álbum, Blackstar, procurando encontrar o máximo de precisão sobre suas intenções e detalhes. É um disco de experimentação, mas nada que comprometa a presença das qualidades mais notáveis na obra de David: pé firme em seu tempo, olhar curioso e destemido para o futuro. Agora, levo uma rasteira com a informação sobre sua morte três dias depois do lançamento oficial do novo trabalho, que coincidiu com seu 69º aniversário.

Bowie lutava contra um câncer e manteve isso em sigilo. Talvez seja um detalhe ínfimo num contexto em que realizações e conquistas são muito mais importantes. Ele é – e pretendo não conjugar verbos no passado em excesso ao me referir a ele – um artista com raríssima capacidade de modernizar tudo o que faz. Autorreferente, pretensioso, inovador, mutante, tudo isso faz com que seja capaz de transformar em presente/futuro tudo o que faz. Seus discos comprovam tal fato e eu mencionava essa qualidade na resenha sobre o novo álbum, afirmando que Blackstar, mesmo não sendo um clássico, tem esse traço presente em suas canções de contemplação da noite, da grande cidade como cenário e do ser humano em busca de redenção. Agora, outro detalhe se descortina: é desses discos gravados em condições precárias de saúde. Existem muitos no Rock.

Ouvi Bowie pela primeira vez em 1983, duetando com Freddie Mercury em Under Pressure. Um ano depois, vi o clipe de Blue Jean na TV e comprei meu primeiro álbum dele, o mediano Tonight, junto do seu antecessor, o bom Let’s Dance. Desde então, há 32 anos, convivo com discos de Bowie em minha vida de ouvinte de música. Tenho preferências, tenho implicâncias, mas, como procedemos com quem gostamos demais, entendemos e passamos por cima dos maus momentos em favor dos bons e da promessa que eles continuem vindo. Com David Bowie é assim: mesmo com discos e canções já conhecidas, algo bom sempre surge e esse desrespeito com o tempo transcorrido, junto a uma habilidade de mudar sua forma, confere a Bowie um caráter, digamos, único.

Se eu puder dar uma dica de qual trabalho dele você deve ouvir, talvez recomende seu início de anos 1970. Ali, com o Rock em colapso, dividido entre marchar nas ruas por um mundo melhor e se tornando um negócio nas mãos de bandas e empresários, Bowie saiu pela tangente, com ideias de misturá-lo com teatro, cinema, literatura e até emprestar seu corpo para assumir uma persona, o ET Ziggy Stardust, sujeito que caiu na Terra sem paraquedas, naquela Londres ainda careta de 1972. Imagino a quantidade de adolescentes que viram suas primeiras performances na TV e o impacto que isso lhes causou para a vida. Imagino se existiria a música como a conhecemos hoje sem a presença e influência de Bowie. Penso que, desafiador do tempo como era, isso não muda com sua ausência física deste mundo estranho.

A obra de David fica conosco e cabe a nós usá-la da melhor forma, sempre lembrando que, ao contrário do normal, ouvi-lo não é revisitar ou recriar o passado, mas chave pro presente e aceno pro futuro. Sua morte é uma perda imensa, descomunal. Irreparável.

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ARTISTA: David Bowie
MARCADORES: Homenagem

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.