É Tempo De Novas Canções Políticas?

Artistas como Father John Misty (foto) recuperam tradição de canções engajadas

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Beyoncé subiu ao palco do Super Bowl 50, a final do Campeonato de Futebol Americano, como uma das grandes atrações do evento. Ela apresentou o novo single, Formation, cuja letra é totalmente dedicada à questão da opressão racial contra negros, que ainda tem lugar, seguidores e simpatizantes nos Estados Unidos. A cantora usou figurino semelhante à roupa clássica de Michael Jackson nos anos 1980, além de contar com bailarinas vestidas como se fossem integrantes do grupo revolucionário Panteras Negras, famoso por defender posições radicais na busca dessa igualdade racial nos anos 1960. Mesmo sendo uma estrela mundial, Beyoncé desagradou aquela banda conservadora americana que sempre se enche de medo quando seus privilégios são postos em risco por declarações desta natureza. Manifestações como esta não são à toa, gente. Vamos lá.

Você já deve ter percebido que o mundo não vai bem. Se não havia, aqui está a notícia: o mundo não vai bem e isso não é de agora. É possível encontrar pessoas que acham que nunca estivemos bem ou que a coisa degringolou no meio dos anos 1990 ou mesmo que ela jamais ficará razoável em tempo algum. O fato é que há vários fatores para enumerarmos como responsáveis por esta sensação/constatação: divisão injusta das riquezas, opressão política, subserviência total ao poder do dinheiro sobre qualquer outra instância, empobrecimento inevitável de cada vez mais pessoas, aquecimento global, desmatamento, poluição, doenças, ganância, corrupção, falta de representatividade democrática, a lista é enorme e tende a aumentar. Foi como eu disse: o mundo não vai bem.

As pessoas têm essa noção de formas diferentes. Se elas são engajadas politicamente, há centenas de causas pelas quais vale a pena destinar alguma parte de seu tempo e procurar fazer sua parte e tentar melhorar algum setor da existência. Se não, o sentimento surge dentro de você, vindo de algum lugar, mas é algo parecido com o que o personagem Neo sente em Matrix: você sabe que algo está errado, mas não percebe exatamente o que é. Mais ou menos isso. Em outros tempos, ao longo da história, parecia mais fácil perceber o que estava errado, não? Questões políticas, econômicas e sociais surgiam como faróis na noite, claras, bem delineadas. Até recentemente era possível detectá-las com razoável precisão e clareza. De uns tempos para cá, mais precisamente, dos anos 1990 em diante, a visão de alguns aspectos da vida parece borrada, sem que sejamos capazes de enxergar contornos muito claros. Não vamos tornar esta leitura muito chata com teorias e elocubrações, mas é possível afirmar que, em termos de século 20/21, a música popular tornou-se uma eficaz ferramenta de expressão, tanto de sentimentos num plano mais, digamos, pessoal, quanto de anseios e desejos de mais gente ao mesmo tempo.

Foi um pedaço de DNA herdado diretamente do Folk e sua tradição de contar o que aconteceu hoje. Daí para pensar nessa lógica para mais e mais pessoas, foi natural. Nos anos 1960, centenas de milhares foram às ruas, subiram aos palcos, cantaram, marcharam, sonharam ao som de um Rock’n’Roll que parecia sob medida para isso. Pouco mudou, os sonhos acabaram, o mundo retornou à sua rotina, mas algo havia mudado. A canção Pop assimilara esta função de veículo de protesto/diagnóstico e a possibilidade novas palavras de ordem misturadas com acordes surgirem tornou-se cada vez mais real. Até meados dos anos 1980, há vários exemplos conhecidos de interação entre canção popular e questões políticas/sociais/econômicas, inclusive eventos como USA For Africa, a união de artistas americanos para gravar um álbum beneficente para ajudar pessoas famintas na África. Antes disso, meses antes, o coletivo de artistas ingleses Band-Aid havia dado a largada, gravando o single Do They Know It’s Christmas, também arrecadando fundos para os famintos do norte da África. Poucos meses depois, concertos monstruosos teriam lugar, trazendo uma quantidade enorme de artistas de vários estilos, a bordo do Live Aid.

Antes disso, porém, já tiveram lugar o Concerto Para Bangladesh (1971), obra do George Harrison pós-Beatles, arrecadando fundos para ajudar as populações em apuros numa das regiões mais densamente povoadas e pobres do planeta; os Concertos Para Camboja (1979), várias celebrações coletivas em que a música Pop protagonizou e viabilizou, como veículo de expressão – a transmissão de alguma mensagem sobre a conjuntura planetária. À medida que fomos adentrando a década de 1990, essa incidência de eventos e mesmo canções com algum conteúdo político rarearam até praticamente desaparecer. Artistas e bandas, em sua maioria, pareciam, bem de acordo com os ventos da chamada “modernidade líquida”, mais preocupados com seus cotidianos, relatando com detalhes suas rotinas de uso de drogas, de fuga da realidade, de experiências sexuais, nada muito além disso. Felizmente temos notado uma mudança gradual e interessante nesta lógica. Aos poucos vemos algumas bandas e cantores Pop da atualidade abraçando questões mais amplas em suas canções, opinando sobre política, sociedade, meio ambiente, ensaiando uma recuperação de terreno neste sentido. Não estamos aqui pregando que toda música – ainda mais a música Pop – precisa ser consciente o tempo todo, algo que é incompatível com sua proposta original, porém, não há nada errado em mudar de assunto, certo? Não indo muito longe no tempo, podemos ver alguns exemplos interessantes, além da bela iniciativa de Beyoncé, lá do início do texto.

Artistas como Rihanna, Eminem, Lady Gaga, Miley Cyrus e Kanye West, não raro, enfrentam problemas com a censura caretíssima americana, por diversos motivos, geralmente por conta de conteúdo sexual de clipes e impropérios contra tudo e todos em letras de suas canções. Aos poucos, suas canções e discos passaram a cutucar questões mais sérias, com West chegando a lançar um álbum – Yeezus – no qual compra certa briga com a igreja católica e derivados. Sabemos que o sujeito tem vocação para este tipo de situação. Neil Young, Morrissey, artistas com início de carreira em outras décadas, não esqueceram de sua habilidade em misturar questões espinhosas em melodias marcantes, muitas vezes pegando pesado com o “sistema” Young lançou dois álbuns recentes contra aspectos nocivos: em 2006 ele pegou pesadíssimo contra o governo W.Bush ao lançar Living With War; ano passado ele voltaria à carga contra a produção de alimentos genéricos da Monsanto e outras empresas megacapitalistas. Morrissey, por sua vez, com o belo álbum World Peace Is None Of Your Business fala explicitamente da crise da democracia representativa . Gente nova como Hozier, tUnE-yArDs e Father John Misty também já deram as respectivas caras para a audiência, com canções sobre militância gay, cultura de banalização do aborto, bem como sobre a desilusão com os Estados Unidos. Kendrick Lamar, responsável por uma bem vinda revolução no Rap, também colocou questões políticas importantes em canções como Alright, faixa de seu celebrado álbum mais recente, To Pimp A Butterfly.

Este tema, aliás, fez com que Green Day, o outrora famoso por álbuns e canções que sugeriam pessoas felizes enfiando sorvetes nas testas umas das outras, enveredasse por uma rota alternativa, na qual gravaria um álbum inteiro, American Idiot, sobre a alienação midiática nos Estados Unidos do século 21. Até na careta cerimônia de entrega do Oscar, a canção Pop de protesto voltou a figurar. A bela Glory, parceria entre o rapper Common e o cantor/pianista John Legend, tema do filme Selma, foi contemplada com o prêmio de melhor canção. O longa fala da simbólica marcha empreendida por Martin Luther King, feita em nome da igualdade racial, partindo da cidade de Selma, no sul dos Estados Unidos, em direção à capital do estado do Alabama, Montgomery.

A questão do ativismo político na música parecia fora de moda até há pouco tempo. O desengajamento deste tipo de questão tem a ver com a própria crise do que entendemos como democracia representativa. Trocando em miúdos: o sistema de eleição por voto, com partidos políticos, do jeito que se apresenta hoje, não mais parece capaz de representar os eleitores e responder suas questões e demandas. Várias correntes acadêmicas pregam uma ampliação do campo democrático, algo que, de alguma forma, é demandado através de questões como estas, propostas por seus artistas mais queridos. Neste artigo, em meio às linhas do texto, estão canções dos últimos anos, que falam de assuntos maiores que as vidas de quem canta, que abrangem mais gente e que, por conseguinte, devem ser ouvidas também por mais pessoas. Conheça.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.