A Perseverança de Charles Bradley

Prestes a lançar terceiro álbum, conheça um pouco da vida do cantor

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(Nota do Editor: Este artigo foi redigido anteriormente ao streaming de Changes)

A vida, esta entidade às vezes estranha, não foi lá muito generosa com o nosso querido Charles Bradley. Pelo menos não há até bem pouco tempo atrás. Prestes a lançar seu terceiro álbum, o “neo-veterano” cantor de Soul Music é uma das personas mais interessantes surgidas na música mundial nos últimos tempos. Sua carreira é um milagre da junção de fatores como acaso, sorte e talento, tudo funcionando meio torto e nem sempre na melhor hora possível. Bradley passou a maior parte de seus 67 anos vivendo como cozinheiro. Dono de uma voz avassaladora, uma sinceridade interpretativa imensa e de uma presença que emana empatia, o velho Charles quase priva o mundo de seu talento.

Bradley nasceu em 1948, na cidadezinha de Gainesville, Florida. Sua família fixou residência no distrito do Brooklyn, em Nova York alguns anos depois. Bradley logo se apaixonou pela música de James Brown mas, por conta de vários fatores, não teve chance de seguir uma carreira consistente como cantor e compositor lá pelo início dos anos 1960. Em pouco tempo arrumou emprego como cozinheiro e decidiu sair da cidade, iniciando uma jornada que o levou para Boston, chegando até o Alasca e a Califórnia, sempre como chef de cozinha ou mero cozinheiro. Depois de muitos anos trabalhando neste ofício, Bradley decidiu voltar para o Brooklyn, mantendo sua ocupação mas tentando, quem sabe, uma chancezinha no terreno musical. Vai que… Não deu outra.

Em pouco tempo, ele conseguiu reunir uma audiência fiel, que compreendia amantes da faceta mais tradicional da Soul Music, bem como uma juventude interessada no estilo, renovado aos poucos a partir do início dos anos 2000. Entre esse pessoal, estava o dono da Daptone Records, Gabriel Roth. O sujeito ficou emocionado com a performance de Charles e logo o contratou para o cast de sua jovem e simpática gravadora, especializada justamente no reposicionamento da música negra mais tradicional no mercado, seja com artistas jovens ou velhos. O caso de Bradley, então com pouco mais de 60 anos e nenhum álbum gravado, só não era sui generis por conta da presença de Sharon Jones na mesma gravadora, ela também uma veterana e ex-faxineira, que despontava para a vida musical. O grande barato na obra de Charles é, justamente, essa impressão de estarmos diante de um mamute musical, daqueles congelados no Ártico e perfeitamente preservados. Sua música, seu jeito de cantar, tudo remonta ao clássico Soul das gravadoras Stax e Volt, que tiveram seu auge no fim dos anos 1960, na cidade de Memphis. Lar de gente como Aretha Franklin, Wilson Pickett, Eddie Floyd e tantos outros pioneiros da coisa.

Lembram que dissemos que a vida não é lá muito camarada com Charles? Após alguns singles gravados para a Daptone, ele recebeu a notícia de que seu sobrinho matara o irmão de Charles, seu pai, numa discussão. Por sugestão da gravadora e de seu parceiro de composições, Thomas Brenneck, ele foi convencido a escrever sobre o assunto e o resultado foi o incandescente single The World (Is Going Up in Flames), que acabaria no primeiro álbum que ele gravou, o belíssimo No Time For Dreaming, lançado em 2011, logo alcançando visibilidade mundial. Além do aspecto “mamute musical” que falamos mais acima, a forma de Charles cantar, misturado com suas experiências de vida, lhe conferem uma autoridade indiscutível para discorrer sobre assuntos corriqueiros como amor, futuro, perseverança e bem querer. Num mundo em que muitos artistas surgem de setores confortáveis da classe média urbana, uma trajetória de lutas e perrengues, com twists do destino como a de Bradley é algo pra lá de incomum.

Depois de excursionar pelo mundo, tendo vindo, inclusive, ao Brasil, Charles lançou o segundo álbum em 2013, o dilacerante Victim Of Love. Se havia algo a ser criticado no compêndio de canções – e o foi apenas por uma fração diminuta da imprensa especializada – a absoluta falta de vontade do nosso cantor e compositor em atualizar sua música. Veja, isto nem é necessário, uma vez que o “Soul Contemporâneo” ou “Neo Soul”, incorpora elementos de música eletrônica e Hip Hop, expressões musicais atualíssimas e urbanas, típicas da população de condição econômica média/baixa dos aglomerados populacionais. Charles não está preocupado com isso, mas, seu terceiro trabalho, Changes, a ser lançado em breve, já aponta para algo neste sentido. O próprio título já entrega algo deste pensamento por parte de Bradley e o single Ain’t It A Sin mostra que talvez ele esteja se arriscando neste terreno pela primeira vez. Uma batida concêntrica a um riff de guitarra invocado servem de caminho para o vozeirão do homem triunfar como nunca. Em algum momento do refrão os proverbiais metais em brasa surgem da esquerda, mostrando como se faz. A outra faixa divulgada, no entanto, não acompanha o descoletismo. Change For The World é messiânica, tem órgão, clima Gospel desesperado e mensagem de amor e paz para o mundo, desde que façamos por onde. Nada pode ser mais tradicional na Soul Music. Além delas, uma impressionante versão Soul para Changes, de Black Sabbath safra 1972.

Seja moderno, seja tradicional, o próximo trabalho de Charles Bradley vai contribuir para a solidificação de uma carreira musical absolutamente sensacional. O homem deve excursionar novamente, nos resta torcer para que dê as caras por aqui. Quem o viu ao vivo por aqui, diz que, além de tudo, ele é boníssima praça e não se furta a abraçar quem está nas primeiras filas de suas plateias. Em breve a gente resenha o novo capítulo desta saga por aqui. Enquanto espera, vá conhecer os dois álbuns do homem.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.