Kraftwerk: O Futuro Não É Como Pensamos

Alemães sempre estiveram e estarão à frente do seu tempo

Loading

Kraftwerk quer dizer “usina de força” em alemão. Muito mais que essa expressão relativamente comum no vocabulário do nosso tempo, o significado que boa parte do mundo leva em conta é de “banda revolucionária alemã, responsável por materializar o futuro em forma de música”. E passa a régua, sem muita demora. O truque da pós-modernidade nos faz pensar que tudo o que existe sempre esteve aqui, certo? Os direitos, a boas coisas da vida, bem como os problemas que o planeta enfrenta, parece que sempre foram os mesmos, que tudo está aqui “porque sim”. Errado, pessoal. Tudo – e isto inclui a música popular – é fruto de constantes mudanças na sociedade e na forma de pensarmos o planeta, as pessoas, nós mesmos. Hoje em dia, pleno 2016, com o que temos aí, não imagino que uma banda seria capaz de levar sua carreira com a premissa dos alemães, quando iniciaram sua trajetória, lá em 1971. Por uma dessas subjetividades do tempo, parece que tudo o que tínhamos para idealizar do futuro já foi feito, seja para o bem, seja para o mal. Né?

A ideia deste texto não é polemizar, mas tentar mostrar o que permaneceu de importante da obra de Kraftwerk hoje, 2016. Eu posso antecipar o seu trabalho de ler tudo o que vem aí embaixo, dizendo: tudo. Tudo permanece como uma conquista da música popular do século 20, um verdadeiro tesouro artístico. Você pode nem dar muito valor, vítima da armadilha pós-moderna que falamos lá em cima, a de que tudo parece sempre ter estado aqui, mas não é assim. Lá no início dos anos 1970, Guerra Fria a pleno vapor, neoliberalismo sendo gestado nas provetas de Chicago, humanidade em busca de mais direitos, socialismo censurando países da Europa Oriental, ditaduras militares pela América do Sul, era impossível olhar o futuro como este eterno looping de casualidade que vemos hoje. Pelo contrário, era ainda tempo de imaginá-lo como um tempo melhor, uma era de tecnologia ajudando a humanidade e vice versa, afinal de contas, voaríamos com foguetes até a Lua e Marte nas férias de verão, certo?

O alemão Andreas Huyssen, professor de literatura comparada da Universidade de Columbia, nos EUA, é um dos estudiosos do que se entende superficialmente como “cultura do passado”. Resumindo e traduzindo para você: segundo ele, há um movimento atual e ocidental de buscar por outro futuro, ou seja, ele diz que “a cultura da memória triunfou sobre o presente, bloqueando qualquer imaginação de futuros alternativos”. Nós, aqui do Monkeybuzz, somos desafiadores desta lógica que Huyssen diz dominar nosso mundo. Ele não está errado, uma vez que vemos a humanidade andar atrás do próprio rabo há muito tempo, buscando símbolos do passado e reinventando-os, tornando-os vendáveis, atrativos, dentro desta cultura de consumo em que vivemos, na qual o próprio consumo nos dá protagonismo social. Tudo está interligado e Kraftwerk entra nisso como uma boia de sinalização para o tempo em que não vivíamos assim, uma época em que nós ousávamos olhar para frente e pensar que, sim, as coisas vão ser diferentes do presente. OK Computer, álbum de 1997 de Radiohead, serviu como um alerta de que as coisas não eram mais como antigamente, ou seja, o futuro parecia ter chegado e ele não era auspicioso, pelo contrário, ele estava muito mais para uma cruza de “Admirável Mundo Novo” com “1984”, obras literárias de Aldous Huxley e George Orwell respectivamente, do que para um episódio legal de “The Jetsons”.

Kraftwerk, ao lado de gênios como David Bowie, Robert Fripp e Brian Eno, percebeu o momento exato em que isso começou a mudar, ou seja, que o futuro não seria tão legal assim como o Capitalismo americano insistia em nos dizer desde meados dos anos 1950, quando o tal “American Way Of Life” ditava os padrões de comportamento e consumo para o planeta. Essa galera notou exatamente que o jogo virara, que as demandas dos hippies não foram atendidas, que muita gente morreu no Vietnã, que a crise do petróleo era uma realidade, que os jovens não tinham emprego, em suma, que as coisas não seriam radiantes e sensacionais como pensávamos. E o que eles fizeram? Expressaram-se em sons, abriram suas mentes para o uso extensivo da tecnologia, não como dominação estética, mas como um instrumento de abertura de mentes, como ponte para nova linguagem.

A música resultante desta percepção ajudou a colocar a utopia na gaveta e pensar no que, de fato, estava se insinuando. Não por acaso, quando Radiohead pensava em OK Computer, esses artistas visionários surgiram como principal fonte de inspiração. Pouca gente notou isso na época, dando à obra da banda inglesa uma aura de ineditismo estético e temático, um disco devedor deste momento de conscientização da música popular. O que diferencia Kraftwerk dos outros componentes desta vanguarda é, justamente, o abraço aos símbolos do futuro idealizado e seu achincalhe. As comunicações, os transportes, as mazelas sociais, o computador, a robótica, as emoções sendo esterelizadas pela modernidade, tudo isso está na obra dos alemães. Mais que meros artistas da Eletrônica, Kraftwerk definiu seu uso na música dançante, algo que poucos imaginavam ser possível. Este movimento deu ao mundo, por exemplo, o Rap, quando sujeitos barra pesada de Nova York ouviram as batidas dançantes dos alemães e as colocaram como base para canto-falar. O resto é história.

A carreira de Kraftwerk é elegantemente concisa. São dez discos em 44 anos de trajetória, sendo que os três primeiros álbuns são consensualmente deixados em segundo plano quando levamos em conta o abraço à música eletrônica como principal elemento de análise. A partir do quarto álbum, Autobahn, lançado em 1974, as mentes pensantes Florian Schneider e Ralf Hütter, optaram por esta análise meticulosa de traços futurísticos já presentes em seu tempo, usando-os sutilmente como elementos para desarticulação desta visão ideal. Dedicado às autoestradas alemãs, metáforas da vida urbana antevista e já existente, a banda parte do Rock Progressivo e do chamado Krautrock (ou Rock Alemão na gíria) para construir um painel ainda não dançante para o corpo, mas ideal para bailar com a mente. A partir daí, os discos futuros seriam obras primas.

Em sete anos, quatro clássicos atemporais: Radioactivity (1975), Trans-Europe Express (1977), The Man-Machine (1978) e Computer World (1981), cada um, a seu modo, desinflando o futuro idealizado com o presente que já vivíamos na época. Distâncias que ficaram curtas, casas que passaram a ter computadores pessoais, seres humanos cada vez menos humanos e uma unificação europeia que só engana a quem está de fora, tudo isso é tema e reflexão no conjunto da obra da banda. Em 1986, surge Electric Cafe, um disco mediano, mas que contem uma pessoal favorita do articulista, a clássica e sensacional The Telephone Call, que, num mundo de Internet e smartphones, ganha contornos de futuro do pretérito. Mais adiante, em 1991, surge um disco remixes feito pela própria banda, numa época em que nada era mais natural que entregar suas criações para outros artistas. Kraftwerk se assumia, discretamente, como o pai da própria matéria. Fez bem. O último item de sua carreira foi lançado em 2003. Tour de France é um elegantíssimo álbum que contem uma trilha sonora imaginada pela banda para a tradicional competição de ciclismo, que se realiza anualmente na França. Em 2012, o Metropolitan Museum de Nova York dedicou oito noites para a banda, incluindo uma extensa exposição de seus álbuns, carreira, análises sobre a importância artística da banda, além de uma performance do grupo ao fim do evento.

Se há algo de Kraftwerk presente ainda hoje, talvez seja, justamente, a noção de que o futuro pode ser uma construção que vai muito além do que esperamos e que temos condições de pensarmos por conta própria. Mais ainda: ao operar máquinas eletrônicas como um instrumento tradutor de linguagem, várias portas e janelas foram abertas – e ainda estão – para a experimentação e para o encurtamento de distâncias entre quem faz e quem aprecia a própria arte. E isso não é pouco.

Loading

ARTISTA: Kraftwerk
MARCADORES: Artigo

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.