Alice Coltrane: A Transcendência Definitiva

Disco esquecido da compositora é uma das experiências mais espirituais da música contemporânea

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Coltrane é um nome monumental na música, tão monumental que é praticamente impossível compreender a genialidade de sua obra mesmo tendo a estudado a fundo por muito tempo. É muito provável que, ao ler isto, o leitor associe esta façanha ao saxofonista americano John Coltrane, o que não deixa de ser verdade. Entretanto, quem também carrega o peso fantástico desse sobrenome é Alice Coltrane, compositora, harpista, pianista e uma das cantoras mais completas e misteriosas da música contemporânea.

Comumente associada ao Jazz, sua carreira se estende por mais de quarenta anos, dentre duetos com seu ex-marido e composições de peças para big bands no início dos anos 1960. Mas, como todo Coltrane, sua obra é um labirinto que, por vezes, deixa algo escapar, e essa imprudência pode às vezes nos custar um apagamento de discos fantásticos da memória de um artista. Alguns podem ter esquecido mas, em 1982, Alice mostrou ao mundo uma experiência definitiva sobre a transcendência e a eternidade, entregando ao mundo o disco Turiya Sings.

Alice se converteu ao hinduísmo em 1970, adotando o nome Swamini Turiyasangitananda, tendo como guru Sathya Sai Baba. A religião sempre foi parte integrante de sua vida e isto apareceu onze anos antes do lançamento de Turiya Sings, no disco Journey in Satchidananda, um trabalho que ainda evidenciava a faceta Jazz inata da compositora e acrescentava alguns instrumentos típicos da música indiana como a cítara e a tabla.

Além desse, os trabalhos de Alice da década de 70 exploraram bastante este território, seja na notável parceria com o guitarrista Carlos Santana (Illuminations, de 1974), ou no disco de música meditativa que mostrava suas qualidades como exímia harpista (Transcendence, de 1978). Mas todos estes, de certa forma, misturavam diversas referências da vida e obra de Alice e, talvez, a mensagem hindu e a filosofia transcendental tenha se perdido em meio a todo isso. Até chegar 1982.

Turiya Sings é o primeiro de uma série de quatro discos lançados pelo Avatar Book Institute, um selo idealizado e criado por Alice. Neste trabalho, a compositora recita mantras com acompanhamentos de orgãos, sintetizadores e alguns pianos. Preenchidos com muitos reverbs e delays, o disco leva a experiência transcendental às últimas consequências, utilizando as frequências como um pêndulo que nos põe em estado alfa.

O trabalho foi eleito pelo site Pitchfork como um dos 50 discos de Ambient Music mais importantes de todos os tempos, mas reduzi-lo apenas a um registro do gênero é limitar suas possibilidades. Alice domina plenamente este universo criado por ela porém, diferente da Ambient Music, a obra não é apenas contemplativa e sim, imersiva. Não que outros trabalhos não o sejam, mas este acima de todos, uma vez que a voz da compositora nos guia por meio deste grande mar de sonoridades, mesmo que não possamos entender plenamente o que ela diz.

São canções de devoção, como dito na capa do disco e, dessa forma, percebemos como Alice se entrega totalmente à sua fé, fazendo jus ao significado de seu nome sânscrito: “a transcendental senhora da alta música abençoada”. Muitos costumam enquadrar o álbum dentro do movimento minimalista e isto só faz o registro ganhar maior importância e qualidade, à medida que ele traz uma infinita quantidade de significados com poucos elementos. Talvez seja um dos lançamentos mais injustiçados da carreira de Alice Coltrane, mas certamente Turiya Sings é a experiência definitiva para quem deseja criar algo transcendental a partir de peças musicais.

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Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique