Pós-Punk: Melancolia Dançante

As origens e contradições de um estilo musical querido e sempre novo

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Fotos: (Duran Duran)

Tentar escrever sobre música às vezes nos coloca em pequenos dilemas históricos. Não digo jornalísticos porque é possível, sob pretexto de dizer qualquer coisa, explicar algo com dados, informações, tudo facilmente manipulável de acordo com circunstâncias e/ou linhas editorais. No caso da escrita histórica, quem “manipula” é a passagem do tempo. Vejamos, por exemplo, o que acontece quando a gente olha para um gênero que ainda é muito presente em nossas vidas de ouvintes/fãs de música: o Pós-Punk. Como explicar que criaturas lúgubres, vestidas de preto, se arrastando por paisagens urbanas desoladas e decadentes, tenham produzido algumas das melhores canções dançantes dos anos 1970/80? Como pensar que ingleses desengonçados seriam capazes de forjar melodias e decalcar fraseados capazes de despertar o remelexo numa juventude igualmente sem tradição neste terreno das pistas de dança? Uma olhada rápida para bandas como The Cure ou Echo And The Bunnymen nos sugere várias impressões, menos que tais formações fossem capazes de dominar algum mandamento da música feita para dançar? Mesmo assim, elas e muitas outras, até o mais funesto Joy Division, flertaram com esta modalidade musical. Como assim? Calma. Vamos clarear isso pra você.

Vamos clarear mas sem soarmos enciclopédicos e/ou chatos. O Rock é, como qualquer outra manifestação cultural, um produto de seu tempo, capaz de refletir nuances sutis e fortes, dependendo do que procuramos. Ao longo da passagem do tempo, alguns fatores vão indo e vindo, facilitando as explicações para os fatos. Neste caso, “fato” dá conta de uma tendência/estilo musical surgindo na segunda metade dos anos 1970, capaz de reverberar até hoje. Quais as razões para que isso tenha acontecido? O que o Pós-Punk tem que o tornou tão longevo e adaptável a um intervalo de tempo de 40 anos? Há bandas surgidas na década de 2000 que podem ser consideradas pertencentes ao gênero, estão, por exemplo, Interpol, Editors, British Sea Power, The Strokes, que não nos deixarão mentir. Mas o assunto não é a longevidade, mas uma característica “alegre” que não combina com o estilo: a dança. Se olharmos para álbuns e origens do Pós-Punk, não identificamos, a princípio, a dança como um fator primordial de existência. Pelo contrário, o cenário indica uma geração de jovens com pouco a celebrar.

Os anos 1970 foram de crise econômica mundial. Repercutiu de formas distintas em regiões do mundo como o Brasil, Inglaterra ou Estados Unidos. Basicamente o motivo disso foi a alta dos preços do petróleo e a desaceleração do capitalismo em relação ao crescimento que vivia desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A principal consequência disso, no caso anglo-americano foi o desemprego entre uma parcela específica da população: os jovens sem especialização universitária. Se fizermos as contas, veremos que estes jovens compõem uma geração seguinte à dos baby boomers, o pessoal nascido nos anos 1940. O mundo já era outro e as salas secretas das nascentes corporações financeiras já clamavam pelo abraço ao neoliberalismo, que ocorreria a partir do início dos anos 1980. Sendo assim, anos como 1977/80 foram de experimentação da chamava pindaíba total. No caso da Inglaterra, empresas faliram, empregos sumiram, cidades do interior ficaram decadentes. A juventude entediada, as famílias sem grana, dependentes de mecanismos do Estado, o governo de Thatcher no horizonte, cortando ajuda, ceifando programas sociais. Havia motivo pra se revoltar ou para não ter qualquer esperança no futuro. Mas, além do “no future”, brado proferido pelos Sex Pistols havia mais coisa acontecendo.

Mesmo soando contraditório, o mundo dançava sob o globo espelhado da Disco Music nesta época. Numa análise muito simples, a música surgida nesta época vinha de duas fontes principais, a saber: o Soul/Funk americano da Filadélfia, uma modalidade mais jazzística, fluida e dançante que o primo-irmão da Motown, que sofreu mutações até ser chamado de Disco Music. Além dele, o Rock de gente como David Bowie, ele mesmo influenciado pelo Soul da Filadélfia, mas também capaz de apropriar-se dessa música e criar algo novo. Essas duas fontes alimentavam a mente dos jovens ingleses na época. É verdade que havia outras coisas acontecendo, entre elas o próprio Punk, que carregou consigo uma boa parte do discurso político distópico e anti-governo e o novo Heavy Metal, personificado por bandas como Iron Maiden. O que entendemos por Pós-Punk vai aglutinar tanto mutações mil de algo que começou na Disco Music mas foi interceptado por Bowie e gente como Roxy Music e Kraftwerk, que concederam experimentalismo e estofo intelectual de formas distintas. Como pano de fundo/justificativa, diversão, reflexão, música para jovens ouvirem em sentido de identidade, na base do “estamos todos f… então vamos nos unir e enfrentar isso juntos”. Nada consciente, tudo fruto do momento.

Dessa forma é possível explicar como gente tão distinta, mas da mesma faixa etária, como Duran Duran e Joy Division coexistiu no mesmo espaço – o interior inglês – fazendo música aparentemente tão distinta, mas que pertence a este mesmo tronco explicativo. Certo, a ideia aqui não é soar como uma aula na Escola do Rock, mas sem olhar dessa forma para a época, não chegaremos a explicar algo que parece estranho como o fator “dança”. O fato é que há correntes sociológicas (oh, não, mais Escola do Rock) que atribuem a eventos sociais como “festa” e manifestações como “dança” o status celebratório que identifica grupos humanos desde sempre. Tais acontecimentos são responsáveis por distinções entre comunidades, nas quais a diversão assume outros patamares de importância, significando, de acordo com a circunstância, quase tudo. Dá pra imaginar jovens, sem grana para quase nada, enxergando no circuito de bandas desta época a chance de transcender suas rotinas miseráveis, seja dançando, seja formando uma banda, seja, quem sabe, ficando famoso.

O caráter da música em si, formada por melodias simples, letras existenciais e instrumental que incorpora, quase sempre, além de baixo, bateria, guitarra, um teclado, é a fotografia daquele tempo. A verdade é que, quando falamos de dança, não estamos nos referindo a algo que tivesse o movimento harmonioso do corpo em mente. A coisa estava muito mais para o frenético, o intencionalmente desengonçado, o desafiador, o diferente. Para isso, era preciso levar em conta as influências que já mencionamos, se apropriar delas de diferentes formas e criar o novo. Vemos que tais bandas e artistas desta época levaram a sério os bons mandamentos e sua ação reverberou ao longo das décadas. Apenas para voltarmos rapidamente à enciclopédia, são gêneros surgidos dentro ou ao mesmo tempo que o Pós-Punk, a New Wave, o Two-Tone, o “Alternativo” e tudo o que significava gente jovem, vestida de forma estranha, fazendo música “estranha”.

Com o passar do tempo e a mudança nos parâmetros da indústria musical e da incorporação definitiva da tecnologia na confecção/gravação das canções, tais situações pareceram diluir-se em paradigmas sem importância aparente. Afinal de contas, dirão os mais jovens, “é tudo música”. Pode ser, mas, há alguns anos, não muito longe na régua do tempo, fronteiras foram quebradas, novas ordens foram criadas. O novo, como já dizia o profeta, sempre vem.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.