O Que Sobrou de Música: Brasil Anos 90

Um balanço do que realmente importou no país daquela década

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Falar de música popular feita no Brasil é algo complexo. País enorme, povo diverso, tradições, modernidades, preconceitos, desigualdade. Tudo isso contribui para que tenhamos cenas musicais distintas e concorrentes, não só em termos de disputa de gostos/mercado/visibilidade, mas, especialmente, significando simultaneidade criativa e de realizações. Significa, resumidamente: não dá pra desprezar um único momento da história da música popular do Brasil (vejam que estou evitando o termo MPB por achar que ele designa um tipo de música feita no país em determinado período, e não o coletivo de manifestações musicais não-eruditas do Brasil desde sempre). Sempre houve, há e haverá algo que deve ser valorizado, (re)lembrado e entendido. Com os anos 1990 não é diferente. Por mais que eles percam para os anos 1980 em termos de glamour e massificação, a última década do século 20 tem um monte de detalhes interessantes para lembrarmos. A ideia deste artigo é essa: dar nome aos bois noventistas que se destacaram e asseguraram seu nome na galeria do que vale à pena ser conhecido. Por você, inclusive.

Um olhar para a música de consumo popular daquela década vai apontar três correntes majoritárias: Sertanejo, Axé e Pagode. Artistas destes gêneros foram campões de vendas e visibilidade de mídia, num espectro que abrangia gente como Daniela Mercury, É O Tchan, Raça Negra e Zezé di Camargo e Luciano. O Rock, por exemplo, ainda que tenha avançado em termos criativos ao longo dos anos 1990, só conseguiu chegar ao topo de paradas de sucesso com fenômenos como Mamonas Assassinas ou o disco acústico dos Titãs e talvez com algum hit do grupo mineiro Skank. De resto, o que nos interessa – a música feita aqui que olhava para uma certa excelência artística e em sintonia mínima com a modernidade – não está nesta prateleira de artistas. Não é um juízo de valor, apenas uma constatação, visto que representantes destes estilos musicais não primaram por incorporar linguagens em seus trabalhos, apenas seguir com o padronizado padrão Pop Romântico, tradicional no país desde os anos 1960. Desta forma, deixando de lado esse pessoal, podemos dizer que artistas surgidos nos anos 1990 foram capazes de cutucar os padrões estéticos vigentes e surgir com algo “novo”.

Sobre “novidade”, proponho o seguinte raciocínio: desde meados dos anos 1980, o mundo já ensaiava o que se entendeu por Globalização. De uma forma bem simplista, o termo servia para designar um mundo com distãncias curtas e com acessibilidade crescente. Lembro de ter aulas na faculdade em que professores saudavam a chegada deste novo tempo, dizendo que “um menino em Londres teria as mesmas referências que um menino em Lagos, capital da Nigéria”. Claro, não era assim. A Globalização era um press kit do neoliberalismo, conjunto de medidas econômicas que visavam enfraquecer a presença do Estado na economia, liberando-a para esta entidade mítica chamada “mercado”.

A Globalização era uma espécie de contrapartida cultural sobre esse cenário. Deixando de lado a ideologia, tudo o que soava/parecia, ao mesmo tempo, mundial e regional, ganhou um status imediato de modernidade. As ideias de “conexão”, “interconexão”, “sintonia”, enfim, tudo o que indicasse a capacidade de enxergar o mundo e a si próprio dentro deste mundo, no qual a tecnologia vinha para resolver o problema das distâncias, era, automaticamente considerado moderno. Pois bem, aplicando essa ideia para a música popular, estava liberada toda e qualquer fusão que mostrasse o Brasil contextualizado num mundo, usando suas referências clássicas de pluralidade racial e cultural, aliando tudo isso a uma realidade global e uniformizadora. Era um movimento que já vinha do início dos anos 1980, especialmente sobre a música produzida com referências africanas e afro-descendentes, pegando aí, tanto o nascente Rap, o Funk, a Disco e as versões contemporâneas do Reggae, do Dub e do Ska. Ou seja: quem entendesse a música brasileira como algo pertencente a uma ideia geopolítica chamada Diáspora Negra, estaria muito moderno. E, sim, teve gente capaz de perceber isso.

E quem percebeu? Vamos lá.

O pessoal do Hip Hop paulistano, Racionais MC’s e Thaíde & DJ Hum à frente, que foram capazes de absorver as influências do original americano e adaptá-lo à realidade local, no caso, a periferia de São Paulo. Com discursos em sintonia com uma juventude sem voz e rosto, estigmatizada nos noticiários, esses artistas, entre muitos outros, foram construindo uma carreira sólida, que explodiria com o lançamento de Sobrevivendo no Inferno, disco dos Racionais de 1997, no qual a vida na prisão e a desigualidade social surgem como signos típicos do negro e do brasileiro pobre.

Em paralelo ao Rap paulistano, veio o Funk carioca. Surgido nos bailes do subúrbio/periferia do Rio de Janeiro, o ritmo foi mudando a partir do fim dos anos 1980, quando era apenas um exercício de montagens e remixagens com originais estrangeiros, evoluindo para uma cena com artistas como Cidinho e Doca, William e Duda, Danda e Tafarel, além do mais bem sucedido exemplo: Claudinho e Buchecha, que saíram do cenário dos bailes de São Gonçalo, região metropolitana do Rio para as paradas de sucesso. Com melodias simples e letras decalcadas do dicionário, a dupla ganhou a simpatia do público com facilidade, chegando ao estrelato na segunda metade da década.

Bandas de Recife, Pernambuco, que tiveram a ideia de misturar as influências do Funk/Rap vindas de fora com ritmos e estilos regionais como o Coco, o Maracatu e o Repente. Liderando essa onda estavam Chico Science & Nação Zumbi e mundo livre s/a, que defendiam a sintonia do lamaçal do mangue recifense com todas as periferias pobres do planeta, uma união estética e humana, que os tornava tão próximos de gente na mesma condição de desigualdade, mas que enxergava na conexão da globalização uma saída para tudo isso. Depois da morte de Chico Science, Nação Zumbi continuou carreira e hoje é uma das mais respeitadas bandas em atividade no país.

Artistas como o já mencionado Skank e grupos como Planet Hemp e Rappa, que surgiram impregnados de influências de Reggae e Dub, com capacidade de mistura ao Pop, ao Rock e até à Eletrônica. Cada um a seu jeito, os três grupos saíram de lugares improváveis (Belo Horizonte, subúrbio do Rio e Baixada Fluminense}) para o estrelato no país.

O trio Paralamas do Sucesso, que descobrira o caminho para esta música integrada desde 1986, quando lançou seu terceiro álbum, Selvagem?, lançou em 1994 um de seus trabalhos menos aclamados, Severino, que retomava a temática antropológica do disco oitentista e a ampliava no contexto da Globalização. Produzido em Londres pelo ex-Roxy Music Phil Manzanera e com participação de gente como o cantor Linton Kwesi Johnson, Severino é um disco que aguarda reavaliação urgente.

Bandas independentes surgiram e sumiram com rapidez naqueles anos. Talvez uma das mais importantes seja a brasliense Maskavo Roots, que foi uma das contratadas (assim como o mundo livre s/a) do selo Banguela Records, do produtor Carlos Eduardo Miranda (RIP) e de alguns integrantes do grupo Titãs. Com uma visão voltada para um mercado brasileiro que não chegou a se impor, o Banguela foi audacioso em lançar novos artistas. A mistura de Rock, Reggae e ritmos nacionais impulsionou o primeiro trabalho do Maskavo Roots, mas o grupo perdeu fôlego rapidamente.

A redescoberta das carreira de Tom Zé e Os Mutantes, através de lançamentos de coletãneas pelo selo Lauaka Bop, de David Byrne, fez circular no mundo a obra destes dois artistas brasileiros, que viviam período de longo ostracismo. Coincidência ou não, ambos são influências decisivas na carreira de uma banda mineira única: Pato Fu. Seu primeiro disco, Roto-Music de Liquidificapum, de 1993, saiu pela Cogumelo Records e misturava poesia abstrata, música amalucada, Rock de vanguarda, num molho impensável para os anos 1980, por exemplo.

Sua cidade, salvo exceções, teve uma cena musical independente forte nos anos 1990. Lugares como Rio, São Paulo, Campinas, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, tiveram bandas e artistas nos subterrâneos capazes de lançar fitas cassete e CD’s independentes com relativa qualidade e relevância. o Rio, por exemplo, teve em empreitadas como o midsummer madness e a Tamborete, pontos de lançamento de bandas como Pelvs, Cigarretes, Second Come, entre outras, que faziam Guitar Rock inspirado em gente como Sonic Youth e Pavement.

Já no fim da década, a gravadora Trama viria revitalizar a cena musical do Funk/Soul, lançando vários artistas e discos importantes, com uma mentalidade já levando em conta a Internet como meio de divulgação de arte e dando o valor à música Eletrônica, que era um motor criativo, especialmente na Inglaterra.

Uma olhadela atenta para este período terá que levar em conta a presença da MTV no Brasil, que teve início em outubro de 1990. Com uma mentalidade inovadora e gradativo espaço para novos artistas nacionais e novas propostas, a emissora paulista foi responsável direta pela força que todos os artistas mencionados neste texto ganharam. Sua importância é diretamente proporcional à música relevante que se fez por aqui durante os anos 1990. Sem ela, certamente, o cenário seria muito mais empobrecido e dominado pela mesma política mercadológica das gravadoras nos anos 1980, pouco capazes de dar conta das novidades e acompanhar o que se fazia de relevante fora do país.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.