O século XXI de Paul McCartney

Com o lançamento de seu novo disco, demos uma repassada pela incrível trajetória musical do ex-beatle com a carreira solo mais prolífica entre os quatro

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Algumas verdades precisam ser ditas sobre Paul McCartney. Ele é o Beatle com carreira solo mais prolífica e duradoura. Sempre foi excelente músico, entrando nos Beatles como guitarrista/baixista/pianista e aprendendo outros instrumentos – como bateria e piano – enquanto esteve na banda. Sempre foi um workaholic, um perfeccionista e, antes que alguém cometa uma enorme injustiça, um entusiasta da nova música e de novos rumos. Sua carreira é povoada de discos ousados, eletrônicos, com todos os instrumentos tocados por ele ou produzidos por gente que está na moda em determinado momento. Paul não cria limo, tem projetos paralelos (como o Fireman, com o produtor Youth) e, aos 71 anos, é um moleque nos palcos. A ideia desse texto é mostrar para fãs de carteirinha e potenciais admiradores o quanto a obra do cara é sensacional. No caso específico, vamos falar dos últimos quinze anos de carreira do sujeito.

Ao contrário da maioria dos mortais, o século XXI começou em 1997 para James Paul McCartney, mais precisamente, no dia em que decidiu fazer um disco para prestar tributo às duas maiores paixões de sua vida: os Beatles e sua esposa Linda, na época, agonizando por conta de um câncer de mama. Paul vinha de uma experiência empolgante, que o ajudara a tocar a vida em face da doença da esposa, o projeto Anthology (3 CD’s duplos e uma série de DVD’s), que chegara ao fim, produzido por Jeff Lynne e George Martin, no qual ele se reencontrara com Ringo Starr e George Harrison e conduzira uma minuciosa busca por raridades dos Beatles, além de lançar duas canções inéditas, finalizadas a partir de registros caseiros feitos por John Lennon: Free As A Bird e Real Love.

Paul decidiu chamar Jeff Lynne, o homem por trás da gloriosa Electric Light Orchestra, para produzir um disco despojado, que acenava para um passado que não estava completamente distante, exatamente como o projeto Anthology o fez pensar. Além disso, Paul empreenderia uma jornada em busca de autoconhecimento, força e redenção. Era como se ele voltasse aos cenários de dois de seus mais belos trabalhos off-Beatles, McCartney (1970) e Ram (1971), discos que também eram acenos a seu interior em busca de respostas, principalmente sobre o que seria a vida após o fim da banda. Só que Paul estava na casa dos 30 anos quando os gravou. Agora, mais de duas décadas depois, ele era um jovem senhor, com seus 55 anos de idade. O resultado chamou-se Flaming Pie, batizado em homenagem a uma sobremesa típica de Liverpool.

Era o início de uma trilogia em homenagem a ele, Linda e a vida que tiveram juntos por 29 anos. O disco trazia momentos memoráveis, principalmente em canções como Calico Skies (até hoje uma favorita nos shows), The World Tonight e a abertura emocionante com The Song We Were Singing. Mesmo com a doença da esposa e com louros da vida artística colhidos sempre (ele e a esposa agora eram Sir Paul e Lady Linda, por conta do recebimento do título de Cavaleiro do Império Britânico) Paul estava produtivo e alerta, ainda que mantivesse o low profile. Quando Linda faleceu, em 17 de abril de 1998, Paul sumiu de cena por pouco mais de um ano, exceto pelo lançamento do segundo disco do projeto paralelo com Youth, Fireman, um parceria que Paul iniciara quatro anos antes com o produtor, um dos responsáveis, entre outras coisas, pela mutação eletrônica do U2 em Zooropa (1993). Em novembro seria lançado Rushes, sem muito alarde e muito mais pendente para o lado eletrônico da moeda, cortesia de Youth. Quando retornou, estava com fome de bola e pronto para exorcizar demônios. Isso era sintomático logo no título de seu novo disco, Run, Devil, Run, uma coleção de clássicos do rock que amamentaram toda a sua geração, com direito a participações de colegas contemporâneos, como David Gilmour (Pink Floyd) nas guitarras e Ian Paice (Deep Purple) na bateria, com ótimos resultados. Em meio aos clássicos revistados, lá estavam as singelas e discretas homenagens à esposa perdida, em duas das três canções autorais de Paul em meio aos covers: Try Not To Cry e What It Is.

A dupla Youth e Macca daria novo fruto em 2000, quando a dupla lançou o até hoje praticamente desconhecido Liverpool Sound Collage. Como o nome já diz, é um caleidoscópio sonoro, cheio de influências de Dub e Ambient Music, levando a habitual abordagem Powerpop de Macca para passear em caminhos contemporâneos. Além da dupla, o grupo galês Super Furry Animals também dá as caras no disco, que contém, entre outras excentricidades, pequenas entrevistas conduzidas pelo próprio Macca, perguntando para pessoas nas ruas de Liverpool qual o significado da música dos Beatles para elas. Outro ponto de captação dos sons foi o túnel sob o rio Mersey, no qual foi colocado um gravador para registrar os sons do local durante a noite. É uma espécie de “lado negro da Força” experimental e inquieto que habita os recônditos do beatle mais “convencional” para a maioria das pessoas. Neste ano, Macca também conheceria Heather Mills, modelo e ativista contra as minas terrestres (ela perdera a perna esquerda ao pisar numa mina supostamente desativada) e começou a namorá-la. Foi como se ele retornasse à vida, agora em outro âmbito, após a morte da primeira esposa. Por conta do pouco tempo entre o falecimento de Linda e o início do namoro com Heather, os filhos de Paul não foram totalmente favoráveis à união.

Sob a influência da relação com Heather, Paul lança o terceiro capítulo dessa trilogia imaginária sobre morte, vida e ressurreição, Driving Rain, em novembro de 2001. Novamente é um disco franco e escancarado sobre o momento que ele está vivendo, consideravelmente diferente do clima de Flaming Pie. Mesmo assim, nenhum dos discos é exatamente triste/alegre ou se vale da tristeza da perda ou da alegria do encontro de um novo amor para existir. Estão mais para instantâneos da alma de Macca nesses momentos, a ponto de Driving Rain conter uma canção chamada “Heather”, entre outras, compostas sob a influência dela, como I Do, Your Loving Flame e Freedom, esta última também composta com base nos acontecimentos do 11 de setembro. O disco ainda trazia “Vanilla Sky”, canção que deu o nome ao filme de Cameron Crowe, lançado na mesma época. Este também foi o ano do retorno de Macca a uma turnê pelos Estados Unidos, algo que ele não fazia desde os tempos dos Wings. Passando por vários cantos da América, o registro da turnê sai em novembro de 2002 sob a forma de CD duplo e DVD.

É o retorno definitivo ao repertório dos Beatles, sem traumas, sem necessidade de provar nada. Paul aceita o legado da banda, ainda mais naquele momento, quando George Harrison havia morrido por conta de câncer e Paul encontrava-se novamente casado, tendo a cerimônia ocorrido em junho de 2002. O repertório de Back In The U.S. traz desde sucessos antológicos de várias fases dos Beatles (All My Loving, Hello Goodbye, Can’t Buy Me Love) passando por hits dos Wings (Band On The Run, Live And Let Die, Let Me Roll It) a momentos iluminados de sua carreira solo como a homenagem a John Lennon em Here Today ou o resgate de “C’Moon” ou o esplendor de Every Night. Era a primeira vez que Macca se apresentava e cantava algumas canções que compusera de forma secundária com John Lennon, como Hello Goodbye e incorporava uma homenagem a George Harrison, com uma versão singela de Something.

O encanto de Paul e Heather, no entanto, durou pouco. Em meados de 2006 eles estariam separados, mas Macca registraria, ainda que de forma parcial, o esfacelamento da relação em Chaos And Creation In The Backyard, lançado em 2005. Para ajudar McCartney no disco, foi chamado o produtor Nigel Godrich, que havia pilotado estúdios para gente como Radiohead e Beck. O resultado é simpático, ainda que penda para um aspecto pouco comum no cânon mccartneyano de música pop: a frieza. O disco é distante, pouco caloroso, apesar de trazer canções belas como Jenny Wren ou This Never Happened Before. O resultado do disco poderia ser diferente se um outro produtor tivesse assumido as gravações, uma vez que Macca tocou todos os instrumentos, exceto pelas cordas.

Em 2006, Macca lançou mais uma de suas peças clássicas, terreno em que ele começara a pisar em 1991, quando lançou Liverpool Oratorio. A sequência seria Ecce Cor Meum, lançado pela EMI Classics, que fez sucesso no âmbito da música erudita mas que jamais passou de excentricidade para fãs de Macca. Ele retornaria à carga em 2007, lançando um belo disco, chamado Memory Almost Full, devidamente calcado em um sentimento de mortalidade. Além disso, o álbum foi lançado no mesmo ano em que McCartney chegava aos 64 anos, idade profetizada por ele mesmo, quarenta anos antes, quando gravou When I’m Sixty-Four no mitológico Sgt. Pepper’s. Ao contrário do tom bem humorado daquela visão irreal da terceira idade, feita por um jovem de 25 anos, Memory Almost Full traz uma real sensação de envelhecimento, já expressada no título, que também faz analogia aos tempos moderníssimos da Era Digital. Ao contrário da trilogia de discos feitos por conta do processo de assimilação da morte de Linda, Memory Almost Full é uma reflexão mais universal. É um senhor de 64 anos pensando sobre o que pode e que não deve mais fazer e como vai lidar com a vida desse jeito. Canções como Dance Tonight, Only Mama Knows e, principalmente, That Was Me, entregam o jogo e mostram um Macca praticamente inédito em termos de estado de espírito. Ao mesmo tempo, Paul travava uma batalha judical contra Heather Mills, o que culminou com um acordo, no qual ele perderia 24 milhões de libras para a ex-esposa.

O baque foi devidamente assimilado e Macca já estava novamente no estúdio com Youth para o lançamento do terceiro disco do Fireman, Electric Arguments, o melhor da dupla. Ao contrário dos outros trabalhos, neste novo álbum, o equilíbrio entre experimentação e apelo pop está no ponto, originando espécimes como Highway, que figurou no repertório dos shows mais recentes, inclusive no Brasil. McCartney também partciparia de um evento histórico em 2009, quando tocou na inauguração do Citi Field, em Nova York, moderníssimo estádio construído sob o velho e mitológico Shea Stadium, no qual os Beatles haviam tocado em 1965. Billy Joel fez o show de despedida do Shea e convidou Macca para cantar I Saw Her Standing There, gentileza que foi retribuída na mesmíssima moeda. Celebrando a data, McCartney lançou o CD/DVD duplo ao vivo Good Evening New York City, que documenta a apresentação devidamente, mas sem muitas novidades, compartilhando 17 canções como o ao vivo mais recente de Paul até então, Back In The U.S, de sete anos antes. Em 2011, Paul McCartney lançaria seu primeiro ballet. Ocean’s Kingdom, no qual é contada a história do amor entre um príncipe e uma princesa, algo que, novamente, não é nossa área, apesar de ser relevante e tal.

No ano seguinte, logo em fevereiro e devidamente embevecido por Nancy Shevell, sua namorada e atual esposa (eles se casariam em 09 de outubro de 2011), Macca lança mais um disco incomum em sua discografia, um tributo a canções dos anos 40/50, ouvidas por ele quando ainda era adolescente em Liverpool. Kisses On The Bottom traz participações de Eric Clapton, Stevie Wonder, Joe Walsh, Diana Krall e a produção do expert em Jazz, Tommy LiPuma. O single My Valentine entrega totalmente o estado gelatinoso e afetuoso em que se encontrava o coração de Paul, integrando um disco simpático, ainda que pouco deslocado no conjunto da obra do ex-Beatle.

Neste ano, o jovem senhor de 71 anos, já soltou um arrasador disco autoral, que marca seu retorno à música pop e ao formato que ele ajudou a consagrar, devidamente batizado como New. Ao contrário do que muitos pensam, Macca está longe da acomodação, cada disco seu é motivado por uma observação atenta do cotidiano ou de seu próprio espírito, que ainda motiva um semideus da música Pop, provavelmente o maior compositor do século XX a entregar suas canções nos nossos aparelhos de som, computadores, tablets e o que mais vier. Inquieto e genial, depois de todos esses anos.

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MARCADORES: Redescubra

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.