1990 – A Década de Ouro da Eletrônica?

Nomes como The Chemical Brothers (foto) garantiram muita qualidade em diversos estilos

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Todos sabemos da importância da música Eletrônica para o próprio conceito de música popular que está em vigência hoje. Esta noção foi se formando a partir do início dos anos 80, quando os instrumentos e as técnicas de gravação começaram a mudar. Há uma diferença grande entre música Eletrônica e eletrônica na música. Se há possibilidades muito maiores em termos de sonoridade e uma versatilidade enorme no que diz respeito ao próprio registro e gravação de uma canção ou todo um disco por conta de recursos eletrônicos, a ideia desse artigo não é essa. Procuramos pensar em como a música feita por DJs, produtores, “não-músicos”, gente que pensa e concebe a própria ideia de música necessariamente como consequência do uso de aparelhagens eletrônicas, pode chegar a um provável ápice nos anos 1990. Teria sido aquela década o auge dessa forma de música?

A versão noventista da música eletrônica atingiu uma variedade impressionante de estilos, rótulos e alternativas. Evoluiu das primeiras experiências dos anos 70, via Kraftwerk, Brian Eno e David Bowie para bandas do Post-Punk inglês, formando uma variação, o Synthpop. Essa incorporação ganhou contornos diferentes nos Estados Unidos, chegando a arranhar alguns elementos como Devo e Talking Heads em termos de música pop, mas causando seu maior impacto na nascente cultura Hip Hop, que absorveu todos os ensinamentos do Kraftwerk na produção de seus novíssimos beats. Depois deste início de caráter mais “complicado”, a parafernália eletrônica veio se somar à música Pop, em artistas de escopo variado, desde Madonna, Beastie Boys e Duran Duran a gente como Thomas Dolby, Depeche Mode ou Pet Shop Boys, que tiveram seus trabalhos totalmente vinculados a essa abordagem estética com fortes traços eletrônicos.

A evolução natural dessa tendência foi a adoção dessas novas sonoridades na música feita para dançar, o que resultou num elemento definidor: a House Music, surgida na cidade americana de Chicago. O nome seria uma redução de Warehouse, referente à boate onde o DJ Frankie Knuckles trabalhava durante a noite. Para atender a um público diversificado, constituído em maioria por latinos, negros e gays, ele resolveu acelerar o andamento de várias canções dos tempos da Disco Music, sobretudo as que tinham vocais femininos. Em pouco tempo, esse molde serviu para novas gravações, que emulavam a combinação que já se mostrava vencedora. Em fins de 1987, o ritmo já dominava boates ao redor do mundo, passando por clubes de Ibiza e chegando à Inglaterra, onde encontrou terreno fértil. Os jovens da Velha Ilha, já influenciados por sua própria cultura multirracial, já se arriscavam em interpretações musicais inovadoras. Tudo isso antecipou o boom cultural do “segundo verão do amor”, em 1988-89, quando a variação “aditivada” da House Music, a acid house, tomou de assalto a Inglaterra e, a partir dela, o resto do Reino Unido e a Europa, varrendo mundo, com bandas da época, como Technotronic, por exemplo, fazendo sucesso até no Brasil. Na superfície, a cena musical inglesa podia parecer restrita às formações sem cara da Acid House ou a bandas novíssimas nascidas na encruzilhada do Rock e da música Eletrônica dançante, como Happy Mondays ou o próprio New Order, que vivia período de interesse renovado. Uma audição mais cuidadosa revelaria um subterrâneo dançante em plena ebulição.

Logo surgiriam termos próprios para nomear diferentes ramificações entre os novos sons eletrônicos que vinham sendo moldados ao longo da década de 1980, nas garagens e quartos de gente criada em apartamento, consumindo música via rádio e TV, comprando disco, indo a festas no clube mais próximo, ou seja, um cenário de não-guerra e não-catástrofe que só se consolidaria quatro décadas após a Segunda Guerra Mundial, em metrópoles com grande contingente de população descendente de negros e latinos. Assim eram Londres e Bristol, cidades portuárias da Inglaterra, cujas cenas musicais comportaram grande parte dessas tendências eletrônicas dos anos 90. Essas novíssimas formas surgiram pela presença desses contingentes populacionais expostos a ambientes de pobreza e opressão em relação aos brancos, típicas dos tempos de Margaret Thatcher. Piores condições de trabalho, menor riqueza, piores habitações, todos esses fatores moldaram o espírito de jovens que encontravam diversão e escapismo na dança, na música e nas festas dadas na rua, numa derivação de uma instituição informal jamaicana, o sound system. Essas pequenas estruturas de som, não mais que alguém tocando música numa aparelhagem devidamente turbinada e saturada de graves, eram muito comuns nessas cidades. Era impossível ignorar o crescimento da Jungle Music, variação rapidíssima de sonoridades jamaicanas como Dub, Toast e Dancehall, derivadas, por sua vez, do Reggae mais clássico. O termo “Jungle” era usado para marcar o fato do estilo ser totalmente influenciado por sons afro-caribenhos. A outra grande influência deke e de todos os ritmos eletrônicos surgidos nos anos 90 foi o Hip Hop. O estilo praticamente suplantou o rock como o preferido dos jovens habitantes de cidades grandes, principalmente por conta da miscigenação inevitável. Não seria espantoso que os criadores de novos espaços musicais tivessem inspiração total na estética do Rap, algo que se mostrou totalmente verdadeiro. Tais ritmos seriam a maior forma de expressão das camadas mais empobrecidas do Reino Unido.

Além do Jungle, o Drum’n’Bass também surgiu na interseção entre Londres e Bristol. A estética não era muito diferente do Jungle, com detalhes mais evidentes, sobretudo no predomínio das linhas de baixo e das batidas sobre qualquer outro instrumento, em variações que chegavam aos 150 bpm, ou “beats per minute”. Jungle atingia a mesma contagem. Um dos grandes expoentes dos dois ritmos foi Roni Size And Reprazent, que lançaria o disco New Forms em 1997. Além dele, LTJ Bukem, com suas Logical Progressions, e Goldie, com sua estreia em 1995, com o disco Timeless, podem ser considerados representantes dignos.

O Big Beat foi outro estilo surgido na época, igualmente calcado no alto número de bpm’s (menor que no Jungle e no D’n’B, chegando a, no máximo, 140) e no peso amplificado da bateria. Era praticamente a desconstrução do Hip Hop, reduzido à batida, mas não só este estilo, uma vez que era possível amplificar e desconstruir tudo, desde Jazz e Soul, passando por Funk e trilhas sonoras. O uso de grande parafernália de efeitos sobre o som original também fez a fama dos artistas que enveredaram por esse caminho, tendo em Fatboy Slim, Apollo 440, The Crystal Method e Prodigy os maiores representantes. Digno de menção também é o Trip Hop, surgido em Bristol, como uma derivação soturna e climática de sonoridades que poderiam vir do Soul, do Reggae mais clássico ou das trilhas sonoras de filmes dos anos 60, feitas por gente como Ennio Morricone, por exemplo. Com a grande participação de gente como Massive Attack (os inventores do estilo), Portishead, Tricky e, em escala menor, Morcheeba e Sneaker Pimps, o trip hop influenciaria a obra de muita gente, de Björk a Nine Inch Nails, artistas que beberam na música eletrônica durante a totalidade de suas carreiras.

Além de estilos mais ou menos definidos, a música eletrônica ganhou espaço definitivo na cena musical dos anos 90. Artistas praticamente livres de rótulos tiveram presença marcante naquele tempo e seguem firmes até hoje. O duo Daft Punk, que surgiu em 1997 com o soberbo disco Home Work, uma visão de adolescentes franceses em meio a uma década de 1980 cheia de influências culturais e musicais. Outro duo francês, Air, com um revisionismo de sonoridades Pop setentistas, devidamente filtradas por abordagens espaciais, como no fabuloso disco Moon Safari (1998), DJ Shadow, responsável por um dos melhores discos da década, Endtroducing (1996), no qual revisita e amplia a visão sobre o hip hop, transformando-o em algo abstrato, sem falar na presença massiva ao longo dos anos 90 de The Chemical Brothers, que tangenciou a cena Rock, chegando a colaborar com gente como Oasis, e proporcionou grandes discos, como Dig Your Own Hole, de 1997, e Surrender, de 1999.

Geralmente lembrada pela presença do Grunge e do Britpop, a década de 1990 foi, sem dúvidas, o momento em que a música Eletrônica mais se desenvolveu e chegou à superfície. Seus representantes conseguiram empreender conquistas musicais na base do “faça você mesmo”, influenciaram muita gente e ampliaram para sempre as possibilidades da música popular. O legado está presente e pronto para ser usado com bom senso. Você precisa conhecer mais essa gente.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.