Coletânea “Existimos, Vol.1”, um manifesto da cena de jazz em SP

Primeiro lançamento do selo Vitrine põe obras de músicos da noite paulistana em diálogo com beatmakers

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Fotos: Victor Ugo

Às vezes nos esquecemos da força poética de verbos corriqueiros. Uma breve consulta em dicionários online mostra que “existir” possui definições como: “ter existência real”; “durar, permanecer”; “haver”. Fato é que há uma cena riquíssima de compositores de jazz na capital de São Paulo. Uma cena que, a despeito da escassez de investimentos, permanece. Uma cena que, em atos como o da coletânea Existimos Vol. 1, do selo Vitrine, pode revelar ao mundo sua existência no sentido mais real da palavra.

Lançada no final de junho, Existimos já fisga pelo título em tempo verbal presente, vigoroso e afirmativo. O projeto tem idealização e curadoria artística de Eduardo Barretto, mais conhecido como EB, DJ e respeitado curador da capital. Há seis anos, ele é quem comanda a curadoria do bar e restaurante Picco que, com programação praticamente diária de música instrumental ao vivo, ocupa lugar de destaque na agenda cultural da noite paulistana.

O selo Vitrine nasce dessa parceria, em um dos momentos mais sombrios da humanidade – e mais críticos para a arte e para o comércio de bares e restaurantes no mundo: a pandemia de Covid-19. EB é quem nos coloca na cena: “Em março de 2020, tudo fechou e a gente ficou sem saber o dia de amanhã. Foram dois meses no desespero e na choradeira até voltarmos pra Terra. Abrimos um delivery e desativamos um escritório que mantínhamos em uma sala, que tem uma vitrine de frente para a rua. Decidimos montar um estúdio ali. Hoje em dia, rolam alguns shows também”.

A vitrine concreta dá o nome à vitrine prática e poética que o selo se propõe a ser para músicos e compositores da cena instrumental e beatmakers do Brasil. Existimos, Vol.1, álbum duplo com edição em vinil, celebra a conexão entre jazz e hip hop. No disco 1, documenta em seis faixas a obra autoral de pratas do Picco: Vanessa Ferreira, Richard Metairon, Anette Camargo, Michel Santos, Bruno Belasco e Juliana Rodrigues. No 2, os mesmos temas em versão remix, interpretadas por beatmakers de primeira: Rafa Jazz, Pancho Trackman, Natu, Th, Dr. Drumah, além do próprio EB.

“Gente do país inteiro vem para São Paulo tocar, você consegue ouvir jazz de segunda a segunda aqui” – EB

O álbum é como um guia da vida noturna do jazz paulistano, com direito a passeios fora de SP através dos remixes. Cada faixa é uma longa avenida, com pontos de partida e destinos dos mais diversos. Algumas mais sinuosas, como “Fluxo”, outras com subidas e descidas, como “Tá Ficando Escuro”. Outras, vias mais planas, como o remix de “Buenos Aires”. Ou irregulares, como “(E)Star”. Becos, cruzamentos, atalhos e viadutos surgem em “Lá no Picco” remix e “El Manguito”. Sobretudo, urbano, cosmopolita, pulsante e coletivo. Estreia do selo, o registro foi mixado e masterizado por Wndl Vcnt, distribuído pela ONErpm e viabilizado pela destilaria escocesa The Glenlivet. A prensagem é da Rocinante.

Montando a vitrine

Com a suspensão da vida noturna pelo isolamento social, EB sentiu urgência em documentar aquilo que existia na efemeridade do ao vivo. “Daqui a dez, quinze anos, meia dúzia de bar pode fechar, a cena vai mudar, e a gente não vai saber que São Paulo foi o epicentro do jazz na América Latina! Gente do país inteiro vem pra cá tocar, você consegue ouvir jazz de segunda a segunda aqui”, testemunha. Assumindo as gravações do estúdio recém-montado, ele consultou seu caderninho com mais de 100 nomes de artistas, e elencou os mais carimbados no Picco para participar da empreitada. Entre eles, os pianistas e compositores Michel Santos e Juliana Rodrigues, que também conversaram com o Monkeybuzz.

Foi na pandemia que Michel se aprofundou na composição. Quando recebeu o convite de EB no fim de 2020 para levar algumas de suas músicas para uma sessão em quarteto com Bruno, Richard e Gustavo Rocha, tirou do bolso “Tá Ficando Escuro”, um tema sugestivo para o momento. Ele explica:

“Compus no começo do ano, um pouco antes da pandemia estourar. Eu tinha acabado de fazer 30 anos e me divorciado, entrei numa crise de identidade, digamos assim. Um dia, no período entre o término, mas ainda sem ter saído da casa que dividia com minha ex, sentei no piano e a música saiu. Gravei no celular, para não esquecer, e gostei pra caramba. Ela tem um ar meio obscuro, como se eu tivesse prevendo que as coisas iam piorar”.

No caso de Juliana, que toca no Picco desde 2018, a escolhida foi “(E)Star”, música dedicada à personalidade de seu irmão e presente em seu álbum de estreia Mnemosine (2017). “Com formação em trio – baixo, bateria e piano –, minha ideia foi subverter o papel dos instrumentos na composição. A bateria faz os comentários por cima da música, o baixo faz a melodia e é o piano quem segura o groove”, detalha.

Os beatmakers vieram um pouco depois. Rafa Jazz, que também é DJ e integra os projetos Beat Brasilis e Cremosa Vinil, trabalhou no remix de “Fluxo” em 2022. “Escolhi a música de Vanessa Ferreira porque o baixo me chamou a atenção na hora”, revela. O instrumento foi o guia para sua produção: “Meu foco foi samplear o baixo da música e adicionar outros elementos, como sax e guitarra, além do beat. De uma música gravada no estilo jam session, fui para um caminho de nu jazz, house jazz, que me deixou muito feliz”.

Dr. Drumah, a.k.a Nu-Konduktor, é um dos poucos fora de SP presentes na coletânea. Baseado em Salvador, o baterista, produtor e fundador do selo Kzah 04 Records, foi convidado em 2020, mas recebeu sinal verde para execução em 2021. “Fiquei com ‘Buenos Aires’ [de Bruno Belasco] e tive a ideia de convidar dois amigos para somar com os arranjos; o Vini, para fazer o baixo, e o deddjazz, para gravar órgão e synths. No processo, senti necessidade de colocar umas colagens de voz falando sobre jazz, e convidei o próprio EB para fazer os scratchs da remix”, relembra.

O processo de produção executiva foi marcado por idas e vindas. Um 2020 de impulso, montagem de estúdio e primeiras gravações. Um 2021 de organização do material e prospecção de parcerias: “Tivemos um possível parceiro que não rolou, e aí dei uma brochada. Pensei em fazer por nós mesmos a parada, mas resolvi segurar, porque não ia ser do jeito que eu queria”, conta EB. Seguiu-se então um 2022 finalizando os remixes e patrocínio. Com isso fechado, mais seis meses para a fabricação do vinil. Ao todo, três anos para o projeto existir no mundo. “Foi muita correria. Eu toco há 15 anos, já tive outro estúdio e produtora, e nunca tinha ficado com um projeto por três anos num ‘vai não vai’”, desabafa.

“Gosto de tocar acompanhando cantores, mas talvez eu faça isso porque é o meu maior ganha pão” – Michel Santos

Serviço, mercado e cultura

A razão de ser do selo Vitrine, traduzida neste primeiro volume de Existimos, é definida no próprio material de divulgação da coletânea como um “esforço coletivo que possibilitou a primeira gravação autoral” de músicos que “vivem de gig em gig, de palco em palco”. Apesar de nichada e elitizada, a realidade dos artistas de médio e pequeno porte da cena é de precarização.

Atreladas à lógica de serviço, com apresentação em bares e restaurantes, as performances ao vivo são transformadas em guarnição; músicas-ambiente que complementam uma experiência de forma coadjuvante. E que recebem cachês baixos. EB retrata: “O cara tem que tocar 48 vezes no mês pra fechar a conta. Tem lugares que tocam música instrumental e pagam muito mal. O músico acaba fazendo muitas gigs na semana, toca com 500 artistas diferentes, se vira para fechar as contas para, às vezes, não ser um artista independente que consiga lançar um disco”.

“Somos trabalhadores precarizados, não temos estrutura nem pagamentos suficientes para as nossas funções. É difícil adquirir equipamentos, lançar coisas a todo o momento. É sempre muito custoso acessar esses meios de produção” – Juliana Rodrigues

Michel faz coro e diz que é difícil encontrar trabalhos legais e bons incentivos na cena instrumental brasileira, além da necessidade de se dividir entre a composição e as apresentações em bares: “Gosto de tocar acompanhando cantores, mas talvez eu faça isso porque é o meu maior ganha pão”. Prestes a gravar seu primeiro disco de forma independente, o pianista, que tem 33 anos e toca desde os 15, calcula não ter conseguido embarcar num projeto próprio mais cedo por falta de dinheiro. E ainda se preocupa com o retorno: “Estúdio, mix, master… é tudo caro. Às vezes o músico vai lá, junta uma grana pra gravar, faz um material legal, mas não tem [garantia] de um retorno disso”, expõe.

“Somos trabalhadores precarizados, não temos estrutura nem pagamentos suficientes para as nossas funções”, sintetiza Juliana, que adiciona ao cenário o machismo estrutural. Compositoras e instrumentistas como ela encaram a desconfiança com o trabalho, assédios, falta de acesso e recebem menos convites. O lema do it yourself também não resolve muita coisa: “É difícil adquirir equipamentos, lançar coisas a todo o momento. É sempre muito custoso acessar esses meios de produção”.

A elitização do consumo de jazz e a desvalorização de seus músicos e compositores instrumentais cria um ciclo vicioso que torna essa cena incapaz de ganhar musculatura suficiente para ecoar fora de sua própria bolha. A falta de gravadoras e selos dispostos a investir no gênero afasta grande parte do público brasileiro. Uma pena, já que a icônica fotografia de Anderson Valentim, do Favelagrafia, em que meninos seguram instrumentos de sopro como armas em uma favela, resume bem a potência que a popularização da música instrumental pode significar em vilas, comunidades, quebradas e palafitas do país.

“O jazz e o hip hop falam muito da minha experiência. E o hip hop é uma porta de entrada; alguém que acompanha um dos beatmakers pode, através da participação dele na coletânea, entrar em contato com as outras faixas e passar a curtir jazz” – EB

Existir para além

Com o selo, EB busca soluções práticas para essas barreiras. Valorizar a função do compositor é uma delas. Juliana destaca: “Eu não faria parte dessa coletânea se não fosse compositora. Não preciso que alguém componha uma música para que eu possa tocar. Ser compositora me permite tocar e também me abre portas, como essa do selo Vitrine”. A visibilidade também é evidenciada nos créditos, já que, mesmo nas plataformas digitais, as primeiras seis faixas aparecem assinadas por seus compositores.

O convite aos beatmakers acena ao hip hop, em particular em sua cultura de samples. “Como o MC Guru do Gang Starr e do Jazzmatazz falava: ‘The jazz bring Hip Hop! An experimental fusion of hip hop and jazz”’, cita Dr. Drumah, representante da escola de jazz rap. Ao lado da prensagem em vinil, ambas são estratégias de expansão e alcance do projeto, o que é reconhecido por Rafa Jazz: “Ganhar vida no formato físico ajuda a levar a música para outros caminhos e ouvintes”. EB também comenta:

“O jazz e o hip hop falam muito da minha experiência. E o hip hop é uma porta de entrada; alguém que acompanha um dos beatmakers pode, através da participação dele na coletânea, entrar em contato com as outras faixas e passar a curtir jazz. Ter o disco em vinil era um desejo meu, que sou colecionador de vinil, mas era importante também pelo fato do jazz estar muito presente nessa cultura”.

Para ele, a concretização da coletânea Existimos Vol.1 tem gosto de alívio, além de catalisar desejos e ansiedades dos próximos passos. “Achei que ia ficar menos ansioso, mas já dá mais ansiedade pra conseguir encaixar outros projetos. Eu já tô cheio de ideias”. Mais do que tudo, o selo Vitrine quer seguir existindo.

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