Resenhas

Carne Doce – Carne Doce

Disco de estreia dos goianos confirma expectativas e é grande exemplo de força e emoção na música em 2014

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Ano: 2014
Selo: Independente
# Faixas: 10
Estilos: Rock Psicodélico, Pós-MPB
Duração: 37:30
Nota: 4.5
Produção: João Victor Santana

Chega a ser difícil muitas vezes, separar o sentimento do trabalho, pois, em diversas situações, ser racional parece ser a solução simples, mas distante, fronteiriça com o próprio delírio. Digo isso porque o ato de se resenhar um disco exige alguns compromissos: o primeiro, o de simplesmente ouvir, o segundo, de tentar entender – por mais complicado que seja – e terceiro, julgar, mas sem ferir, criticar e não afagar, ser sincero. Tal monólogo tem uma razão e, de algum jeito, o meu trabalho com o de Carne Doce se unem, misturam. Enquanto Salma Jô e Macloys Aquino, casal companheiro e letrista neste poderoso álbum de estreia, tem que dividir funções não só em respeito ao seu relacionamento mas também em relação seu ofício, eu tenho que respeitar o meu envolvimento com a música mesmo possuindo uma função relacionada a esta relação.

Entretanto, se a simbiose desse poderoso dueto, que na verdade é um quinteto goiano com metade do grupo Luziluzia (João Vitor e Ricardo Machado) e o baixista Aderson Maia, funciona tão bem, posso dizer que poucas vezes me vi tão confortável em ser pessoal com um disco e expor o que digo e penso. Carne Doce é um manifesto, um pacote de ideias nada consolidadas ou ditas definitivas, assim como a manifestação de uma família e seus princípios, todos muito mundanos, justos, sinceros e que se mostraram em poucos momentos tão inclusivos na música em 2014, como agora. Em tempos de bipolaridade partidária, raiva racial e preconceito sexual, o grupo tenta mostrar que seu jeito de ser e viver é eficaz, sincero e, pelo menos para mim, romântico. Talvez por simplesmente viver em uma cidade grande como São Paulo, em que se comemora uma praça, ver que a vida pode ser tranquila, mas que está também mudando, em outros cantos do Brasil seja tão cativante e encantador, ainda que também preocupante. Seja nas letras, verdadeiros lamentos, dizeres e sussurros entre os dois, mas feito para os demais (“Eu tenho um bando que amo aqui/Esse é meu lugar”, canta a pleno pulmões em Benzin) e sem se esquecer de fazer as frentes de mãe, companheira e mulher, a voz de Salma é que o rege um movimento bem expansivo de guitarras psicodélicas, provacantes, baixos pontuados e percussões estimulantes.

Com todo respeito, a cantora é apaixonante, uma voz que não se espera resposta e que somente se propõe a dizer o que sente, ou na verdade que se permite sentir. Arrepia quando alcança agudos em Benzin, composição psicodélica feita à oito mãos com Benke e Dinho (Boogarins), uma das mais letárgicas de todo o disco, ou na efervescente abertura Ideia, vertical composição que faz subir o tom de sua voz (“Gente que pensa que pra fazer ideia é preciso ir pra escola/Cola aqui/Diz como é que você está se sentindo), e afaga em Amigo dos Bichos – “Ô trem, que é que você fez dessa vez?” enquanto condena os progressos do mundo moderno, alto em prédios e com propostas de uma vida enclausurada em condomínios – “Aqui no mato/ Vai ocupando o concreto” em Sertão Urbano.

Abre pra discussões mais profundas na detalhista Preto Negro (“Eu, bege, que sempre tive mais/Que sempre tive paz/Sinto esse negro/Sinto essa culpa”) e sempre nos faz questionar: como lidar com a culpa pela ações dos outros, sejam elas o racismo, a pobreza do seu semelhante ou a mudança da vida em nossas cidades? De uma forma ou de outra, encanta, porém sem nunca se esquecer de seu próposito: a família sentida em cada acorde de um bando que faz música brasileira sem rótulos, sem comodismos – experimenta sem querer aparecer e bebe da psicodelia de uma cidade, Goiânia, cada vez mais psicoativa para a música nacional.

É por isso que encontramos exemplos de Baião em Fruta Elétrica, faixa presente em seu EP de estreia, Dos Namorados, ou vemos um Rock suingado, melancólico na linda Adoração, fechamento que parece nos insinuar para um abraço caloroso com nosso amor: “Chapei na sua dança”, diz Salma enquanto chapamos nas boas vibrações das guitarras de Macloys. Tal sensação retorna na maravilhosa Passivo, expressão de força e vontade de uma mulher, cheia de desejos: “Você só quer fazer bem/Mas eu não/Vem me fuder/Vem me fazer dar”, mas que também sente o mundo ao seu redor e entende a vida de companherismo na sincera e contemporânea Fetiche. Não adianta tentar esconder o fato que o expositor e exibicionista mundo atual nos faz almejar outros gostos e outras aventuras , mesmo estando junto a alguém, formando um laço, relacionamento. O segredo disso? O compromisso e a liberdade “Então vá, pode ir/Que eu ficarei aqui/ Esperando você voltar”. A dualidade entre a fragilidade e força, papéis subvertidos à mulher, mas inerentes a qualquer gênero, não poderiam emocionar tanto como acontece em Carne Doce.

No entanto, Amigo dos Bichos é a faixa que me faz, sinceramente, ter lágrimas no olho. Sua letra, que trata da infância, das banalidades que temos quando somos crianças (“E o que tem de melhor é sua lancheira”), coloca Salma no papel de mãe, de educadora e me faz lembrar da minha mãe, avó e qualquer figura materna que eu já tive na vida – sua levada leve, feita nos detalhes da guitarra, mas com os pratos abertos da bateria, como uma chuva que cai de leve no peito da janela, me faz viajar no tempo e querer sentir aquela inocência novamente.

As lembranças do som do grupo? Temos um pouco de Juçara Marçal e seu Metá Metá, a psicodelia de Boogarins de uma forma mais madura e menos expressiva e as canções de autor de Clube da Esquina de Milton Nascimento e Lô Borges – ou será só uma lembrança pela capa que coloca uma criança no papel principal, sentada e misteriosa? Enfim, não se preocupe com estilos ou clichês, pois, em poucos momentos na música em 2014, tivemos a chance de nos encontrarmos em letras, enxergarmos a beleza ao nosso arredor e não nos sentirmos sozinhos como esta obra proporciona, sensações que Carne Doce nos passa em cada acorde jogado ao vento, cada delay na guitarra ou grito de Salma. Não fuja e tente se encontrar nesta belíssima estreia, um trabalho disponibilizado para ser baixado de graça aqui, mas que pode ser escutado via streaming no YouTube ou no player do Soundcloud abaixo. Seja qual for o seu credo, cor ou opção de vida, dê uma adocicada na carcaça com este poderoso e lindo exemplo de Música Brasileira Contemporânea.

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.