Resenhas

Seasick Steve – Sonic Soul Surfer

Novo álbum do cantor e compositor americano é autêntica e endiabrada obra prima do Blues

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Ano: 2015
Selo: There's A Dead Skunk Records
# Faixas: 12
Estilos: Blues, Blues Rock, Folk Rockq
Duração: 56:14
Nota: 4.5
Produção: Steve Wold

O que é Blues em 2015? É possível abraçar esse estilo hoje sem soar irremediavelmente datado e pouco original? Ele estaria mesmo preso à agonia dos negros americanos nas lavouras e sua consequente odisseia em busca de lugar numa sociedade racista e desigual, ainda na segunda metade do século 19? Talvez sim, talvez não. A existência de um sujeito como Seasick Steve coloca o imponderável nestas questões e aponta para uma faceta do Blues que tende a ficar esquecida da maioria, que é a função dessas canções tristes e rascantes como trilha sonora pessoal de fracassos, lamentos, idas e vindas de gente comum. De gente como o próprio Steve, que tem uma história de vida impressionante, que, só para resumir, começa na ensolarada Oakland, com passagens nos anos 1960 (foi amigo de gente como Joni Mitchell), nos anos 1990 (quando trabalhou como engenheiro de som em Seattle, gravando bandas como Modest Mouse, entre outras) até sua ida para a Europa, onde tocou no metrô de Paris e seu tempo na Noruega, onde foi “encontrado” por radialistas e músicos locais. Desde então (2004), Steve já lançou sete discos, tendo iniciado sua carreira com 63 anos. Sim, isso mesmo.

Apesar da idade, não há uma única centelha de nostalgia ou repetição em seus discos, e este brilhante Sonic Soul Surfer não foge à regra. A foto de Steve, hoje com 74 anos, esticado numa cadeira de praia à frente de uma brilhante Chevy Station Wagon 1951 com pranchas de surf na capota, já aponta que o sujeito é atemporal. A sonoridade que pratica está longe do que aprendemos a entender como Blues, não tem chororô e transparece uma dolorida autenticidade que faria Jack White leiloar sua coleção de vinis. A impressão que temos é que Steve toca e canta de forma totalmente intuitiva e se cerca do mínimo possível, contando neste álbum apenas com guitarras e baixos – personalizados por ele – uma bateria minimalista provida pelo colaborador de longa data, Dan Magnusson. Além desse arcabouço sonoro elementar, há participações econômicas de Luther Dickinson na slide guitar, Gerogina Leach tocando rabeca e Ben Miller, tocando harpa judaica, na faixa título. O resto é pura tempestade sônica de vovô garoto.

Não pense que a audição deste álbum vai trazer compadecimento do velhinho que sofreu e passou por poucas e boas. Steve já chuta o pau da barra, o balde e a bunda da mesmice logo de cara com a iridescente Roy’s Gang, cheia de ruídos de ajuste de timbre, percussão estranha e levada malandríssima, conduzida por bateria pesadinha e sua voz, devidamente turbinada por efeitos de microfonia. A guitarra sobe e desce, ora fazendo a base, ora provendo de profundidade o arranjo minimalista. Bring It On já tem uma levada mais cadenciada, com Magnusson emulando uma bateria que poderia estar numa gravação de Creedence Clearwater Revival. O clima é de churrasco no quintal, com muita bebida, gente falando coisas sem sentido e uma cantoria qualquer, num canto. Dog Gonna Play já é mais lenta e Steve conduz a melodia da canção com precisão de câmera lenta, com um riff perfeito e cheio de veneno.

Uma atmosfera Country de manhã no celeiro surge com In Peaceful Dreams, lenta, sutil e sinuosa, abrindo caminho para a pauleira com harpa judaica que é Summertime Boy, cheia de sentimentos simpáticos pela luz do sol após uma noite de bebedeira total. Swamp Dog é, como o nome já diz, pantanosa e lenta, cheia de canto e resposta, antecedendo a levada ZZ Top que propulsiona a faixa título, com riff de Blues totalmente elétrico que deságua numa bateria de sonoridade estranha, a ponto de sair dos trilhos e tudo explodir mais à frente. Logo após algo que poderia ser uma canção de ninar, com o nome de Right On Time, cheia de violão e amor por alguém que está “esperando por nosso herói em seus sonhos à noite”. A singeleza da canção é surpreende levando em conta as pequenas explosões do álbum até aqui, dando ensejo à próxima faixa, a sensacional Barracuda 68, aludindo a uma fuga pela estrada da vida a bordo de um Plymouth Barracuda empoeirado ou, quem sabe, comparando a mulher amada a uma dessas obras de arte da engenharia automobilística ianque.

O trio final de canções começa com a agridoçura de We Be Moving, passando pela batida no corpo do violão que abrilhanta a cadência de Your Name, que poderia ser cantada nas encruzilhadas do mundo, abrindo passagem para a derradeira faixa, a autobiográfica e acústica Heart Full Of Scars, plácida, doída, lenta, como o próprio tempo.

Este novo álbum de Seasick Steve é um ticket de entrada num mundo de vivências através da música. Não há um plano, um roteiro rígido, apenas o sentimento, o instrumental e as histórias, que continuam sendo o mais poderoso combustível da canção popular e o que as leva para o terreno do atemporal, do imemorial. Brilhante.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.