Resenhas

Kurt Vile – b’lieve i’m goin down

Músico americano propõe viagem interior em belíssimo trabalho

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Ano: 2015
Selo: Matador
# Faixas: 12
Estilos: Folk, Country, Singer-Songwriter
Duração: 60:54
Nota: 5.0
Produção: Kurt Vile, Rob Laasko

“Resiliência” é um substantivo utilizado para definir a capacidade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer um choque ou deformação. Em psicologia. empresta-se o termo para definir a capacidade de o indivíduo lidar com problemas, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas. Em outro contexto, a filosofia taoísta usa a metáfora da água para demonstrar como devemos aceitar o fluxo de acontecimentos da vida, desviando, moldando ou mesmo sobrepondo obstáculos, sem lutar contra a correnteza nem se rebelar contra a direção em que nossa vida se volta. Sísifo, por sua vez, é um personagem da mitologia grega condenado a carregar uma pedra para o cume de uma montanha, apenas para vê-la rolar abaixo novamente. Sua história é freqüentemente utilizada como uma metáfora para o absurdo da condição humana. Cito aqui três exemplos bastante anacrônicos, mas que provam a universalidade de um dilema humano – a aceitação do jugo da vida – e que, com certeza, ajudam a contextualizar b’lieve i’m going down, a nova (e belíssima) obra do músico americano Kurt Vile.

Vile, na altura de seus 35 anos de idade (e de seu sexto álbum) parece compreender a necessidade de aceitar com humildade o fardo da jornada do homem, pelas vias estreitas (“walking on the straight and narrow”) e vales sombrios (“valley of ashes”) da vida. Não que o músico esteja necessariamente ligado a alguma das doutrinas citadas anteriormente, mas o modo coeso como o trabalho se desenrola prova que suas faixas nasceram de uma experiência de vida real, profunda e sincera. Todavia, a faceta mais impressionante deste trabalho é a consciência de que a grande lição a ser aprendida não é apenas a mera aceitação da “vida como ela é”, mas a de que a grande jornada do homem é espiritual e interior.

Não tenho certeza se seria justo chamar b’lieve i’m going down de “álbum temático”, mas, sem dúvida nenhuma, a tônica do trabalho é uma reflexão do artista, um olhar generoso de fora para dentro e uma viagem introspectiva. A todo momento, temos Vile insatisfeito com seu cotidiano e observando a si mesmo (como nas excelentes faixas de abertura Pretty Pimpin e I’m An Outlaw). O “fora-da-lei” desta última pode ser entendido não como um criminoso literal, mas sim como alguém que se encontra fora dos padrões e regras sociais nas quais está inserido. Como o próprio título do trabalho indica, as reflexões de Vile não tem um tom muito otimista, mas, embora melancólico, a postura do mesmo em relação ao mundo está longe de ser catastrófica; senão, bastante resignada, temperada com seu humor particular, como podemos observar na realista That’s Life, Tho. A máxima do mito de Sísifo também pode ser encontrada nesta última, que diz “the laws of physics have shown that a man must walk through life via peaks and valleys”.

Wheelhouse, por sua vez, é uma faixa meditativa, que sugere a redenção deste sofrimento ameno e perene: a auto-descoberta. Vile denota que, ao invés da salvação alcançada em templos e igrejas, há um caminho interior para a paz, “a hidden staircase in the house that you reside in”. Tal casa, o próprio corpo, é um enigma revelado sutilmente no final do trabalho, mais precisamente na faixa Kidding Around, que nos diz “blood all over the house you reside in, but it’s all an illusion”.

O deserto, aliás, citado nesta mesma faixa, é a ambientação tanto simbólica quanto literal para este trabalho. Gravado majoritariamente num estúdio localizado no deserto californiano, b’lieve… exala o clima interiorano dos Estados Unidos ao mesmo tempo em que sugere insistentemente a aura de tranquilidade, silêncio e isolamento.

Ainda sobre este clima, a presença marcante da guitarra dedilhada, indica uma herança direta das vertentes mais introvetidas do Folk e também do Country. A incorporação de suas faixas em apenas voz e guitarra, piano (e, ocasionalmente, uma bateria discreta) é um sintoma perfeito para a organicidade de um trabalho tão pessoal.

b’lieve… remete a grandes nomes na música, como por exemplo o mago Neil Young e seu On The Beach, que evoca o mesmo clima provinciano, melancólico, suave e de solitude que nos convida a “ouvir mais e falar menos”. Encontramos também alguns trejeitos narrativos vindos de Bob Dylan e também o mesmo espírito (aqui, todavia, um pouco menos trágico) que o nosso melhor-álbum-do-ano-passado, Benji, de Sun Kil Moon.

Por equiparar-se a alguns dos melhores trabalhos deste ano (que já se demonstrou bastante produtivo para a música mundial), e por sobressair a tantos outros, e também por demonstrar uma produção um pouco mais centrada do que seu excelente predecessor Waking On A Pretty Daze (mas, por isso mesmo, mais sensato, centrado, coeso e profundo em seus temas), a nota máxima para Kurt Vile é uma aceitação a seu convite em direção a uma jornada interior tragicômica, de tom realista, melancólica e suave.

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BOM PARA QUEM OUVE: Sun Kil Moon, Neil Young
ARTISTA: Kurt Vile

Autor:

é músico e escreve sobre arte