Resenhas

Charles Bradley – Changes

Cantor americano de Soul lança seu terceiro e melhor álbum

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Ano: 2016
Selo: Daptone
# Faixas: 11
Estilos: Soul, R&B
Duração: 40:44
Nota: 4.0
Produção: Thomas Brenneck

Sabe o Neo Soul? Aquele estilo mais ou menos criado na classe média planetária com zero sofrimento e ausência de revezes na vida? Aquele estilo legal e vintage, com artistas sem cara, mas com algum estilo, consultoria de moda, assessoria de imprensa, com tudo e todos prontos para vendê-los como a próxima bolacha do pacote… Sabe essa gente? Então esqueça, pelo menos por agora, enquanto lê esta singela e simpática resenha sobre o novo álbum de Charles Bradley, o mito, a lenda, o sujeito que demorou décadas para lançar seu primeiro registro, o homem que cruzou os Estados Unidos de costa à costa como cozinheiro, trabalhando em todos os tipos de estabelecimento e que, felizmente, já está no terceiro lançamento. Changes chega para reclamar seu lugar entre esta resistência Soul que se estabelece aqui e ali.

Antes de mais nada, a voz de Bradley. São 68 anos de porrada na cara, de vida dura, de trajetória de um negro comum, da Flórida, indo e vindo pelos caminhos de um país racista e bem desigual. Tal calibragem na estrada da vida conta muito ponto quando o assunto é música Soul, gente. A origem – e função – deste gênero é a comunhão entre terreno e sagrado como forma de arte e filosofia de vida, embutindo aí os conceitos de “céu” e “inferno”, “bom” e “mau”, é coisa bem séria. Por isso a nada discreta alfinetada com a apropriação moderninha de poucos aspectos do Soul lá do primeiro parágrafo. Aqui não é o caso: apesar de feito agora, composto agora, gravado agora, produzido com tecnologia de 2016, Changes tem sonoridade e pinta de produção do Sul dos Estados Unidos em algum lugar entre 1970 e 1974. Esse verniz verdadeiramente antigo não deve ser problema para você apreciar o álbum, sabe?

Pelo contrário, vai te dar uma espécie de carta branca, através dos verdadeiros caminhos da canção negra americana, por conta desta solenidade e respeito que Bradley carrega consigo. Sua voz está muito parecida com a do godfather James Brown, puxando mais para o aspecto emocional dela. São registros impressionantes de intensidade, dando autenticidade à coisa toda. As canções, talvez o ponto mais fraco de Charles (compostas em parceria com o produtor Thomas Brenneck), estão melhores e com mais ressonância. Exemplos não faltam: Good To Be Back Home chega com andamento em midtempo e toda uma abordagem vocal “jamesbrowniana”, com direito até aos tradicionais “good god” que Mr. Dynamite costumava fazer. Só que, em meio a uma cascata de metais, Bradley se derrama em emoção e parece que sua vida depende dos vocais da canção.

A mesma sensação de urgência está em todo o disco, mas explode na belezura de Nobody But You, com instrumental bonito, teclados acolchoados e uma citação luminosa do naipe de metais a Summer Breeze, da dupla Seals And Crofts, canção que, muito provavelmente, seus pais conhecem. Changes, a virtuosa cover de um Black Sabbath safra 1971, é um enorme ato de ousadia musical, principalmente porque Charles e sua turma conseguem identificar o espírito Soul da canção que provavelmente seus autores – a saber, Ozzy Osborne, Geezer Butler, Tony Iommi e Bill Ward – jamais imaginaram haver em sua própria criação. O andamento é de nítida têmpera Gospel, no esquema do homem combalido pela vida que decide mudar depois de tantas porradas dadas pelo destino. O resultado é comovente e soa verdadeiro. Há certo acento Motown em Things We Do For Love, com ginga de guitarrinha sinuosa, vocais de apoio Doo Wop da esquina da rua, em frente ao tonel pegando fogo e auxílio luxuoso de pianos e órgão, conferindo clima perfeito. Change For The World tem instrumental surpreendente, com destaque para o arranjo de bateria e baixo, que pavimentam toda a rua para que o resto todo possa seguir sem sobressaltos. A voz de Charles soa como a de um pregador do apocalipse. Belezura.

Changes, o álbum, é o melhor produto musical que Charles Bradley coloca na praça, acenando para uma evolução dele como cantor e, sobretudo, como compositor. A mola mestra do estilo, de traduzir o cotidiano complexo e a necessidade de redenção pelo espírito/religião é a grande diferença que temos aqui. Charles parece que está perdendo o receio de abraçar a verdadeira essência da coisa, desprendido de alguma orientação para soar moderninho. Quem ganha somos nós e ele, certamente. Um dos discos do ano.

(Changes em uma faixa: Nobody But You)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.