Resenhas

Kiko Dinucci – Cortes Curtos

Compositor e guitarrista paulista solta primeiro e impressionante disco solo

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Ano: 2017
Selo: Independente
# Faixas: 15
Estilos: Rock, MPB, Rock Alternativo
Nota: 4.5
Produção: Kiko Dinucci

Ouvidos zumbindo. Olhar parado. Mente vagando. Estas são as consequências imediatas da audição deste impressionante Cortes Curtos, o primeiro disco realmente solo de Kiko Dinucci. O nome do guitarrista e produtor paulista está embaixo de vários trabalhos impecáveis dos últimos tempos, desde os realizados com a banda da qual faz parte, Metá Metá, passando por colaborações com Juçara Marçal (também da Metá), Elza Soares, Criolo, só pra mencionar alguns. Esta pequena lista já dá a pista da área de atuação de Kiko, a megalópole 011, esta cidade paradoxal, túmulo do samba, que contradiz progresso e preconceito, que desafia a lógica. Se o caso de amor de Kiko com São Paulo é profundo e essencial em sua narrativa, a boa notícia é que ele sabe muito bem como traduzir isso.

Cortes Curtos tem quinze faixas dilacerantes. A mistura de modernidade, Samba, guitarra e narrativa urbana fornece uma liga sólida sobre a qual Dinucci constrói um painel caótico, que, como boa peça paulista, é contraditória por exibir uma harmonia rara de se ver na ausência de qualquer ordem. As canções se dobram como peças de uma serenata marginal para ninguém, nem pra si mesmo, mas que se encaixam na vida de muita gente que passa lá embaixo, na rua que Kiko parece observar de uma janela não tão alta. Temas angustiantes sobre preconceito, violência, amor, dúvida, suicídio, vão se sucedendo ao longo do disco, levando o ouvinte pra uma tour de force equivalente à que Lou Reed propõe em New York, disco que ele lançou em 1989, não por acaso, em homenagem à Grande Maçã, revelando suas virtudes e defeitos como dois lados da mesma moeda. Sem qualquer link sonoro com Reed, Kiko faz o mesmo com Sampa.

Há muito que um artista brasileiro não obtém uma sonoridade instigante e nova como a que Dinucci apresenta aqui. Suas influências vão de Samba tradicional a Hardcore, passando por Vanguarda Paulistana , Rock Alternativo americano à la Sonic Youth e desilusão Pós-Punk soturna típica de um Joy Division. Dá pra fazer até um paralelo bem distante com a apropriação que Los Hermanos fez com o Carnaval, mas enquanto os cariocas enfatizaram amor e melancolia existenciais, Kiko mergulhou no Lado Negro da Força com elasticidade. O resultado tem momentos pouco amistosos, especialmente a incrível Uma Hora da Manhã, na qual tem lugar uma discussão entre uma mulher nordestina e um rapaz “pálido e levemente efeminado” sobre preconceito. Não tarda a vir um animalesco “seu viaaaaado, viadinho, seu baitolaaaa”, proferido pela mulher ensandecida, que arremata “sou nordestina sim, com muito orgulho”. Ainda segundo a letra, a discussão tem lugar “no supermercado Extra da Brigadeiro, à uma da manhã”. A polaróide urbana, tristemente possível, é impressionante pelo realismo e pela maçaroca sonora que pavimenta seu caminho.

Já a lírica e terrível Chorei, mostra um samba terminal que dá lugar a uma guitarrama que faria Sonic Youth sentir-se amador. Sob apitos e microfonias implícitas, Kiko solta os versos “chorei, chorei quando vi você nascer, chorei pra valer” e a voz de Juçara Marçal vem juntar-se ao percurso da canção. O humor negro, típico de mestres do passado, como Aldir Blanc e João Bosco, tem lugar na ótima Vazio da Morte, que narra a tentativa de suicídio de um sujeito que queria se atirar do alto do prédio do Banespa mas chega fora do horário de visita e precisa voltar no dia seguinte. Enquanto lamenta a perda da oportunidade, ele revela que pretende cair em cima de alguém porque “quer companhia no vazio da morte”. Tudo isso é cantado em meio a uma tempestade guitarreira com propriedade e sarcasmo. Também há espaço para amor derramado, seja na simpática Morena do Facebook, seja na melancólica Crack Pra Ninar ou na dançante e quase-Reggae O Inferno Tem Sede, que traz a voz maviosa de Tulipa Ruiz.

Kiko Dinucci já pode ser considerado um dos grandes artistas brasileiros em atividade. Excelente guitarrista, ótimo compositor e um sujeito que sabe colocar suas observações da vida cotidiana e maníaca, que experimentamos sem ter muita ideia do que estamos fazendo. Suas angústias e inquietações acabam servindo como camisas de força sob medida para quase todos nós. Um senhor disco.

(Cortes Curtos em uma música: Chorei)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.