Resenhas

Craig Finn – We All Want the Same Things

Cantor e compositor norte-americano lança disco literário e sensacional

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Ano: 2017
Selo: Partisan
# Faixas: 10
Estilos: Folk Rock, Rock Alternativo, Rock
Duração: 43:58
Nota: 4.0
Produção: Josh Kaufman

Talvez haja alguma citação famosa dizendo que a melhor ficção é aquela que parece real. Ou talvez não seja nada disso, pelo contrário, quanto mais irreal, melhor. O fato é que este novo álbum de Craig Finn é um ótimo exemplo de narrativas de situações reais vividas por personagens fictícios, segundo o próprio autor. Uma olhada mais atenta e um pouco de quilometragem de vida nos dá a certeza que, por mais nomes falsos que crie, o autor sempre estará falando de si e do que conhece. O crítico musical – que até já se aventurou na escrita de um romance há dez anos – sabe bem disso. Existe uma tradição norte-americana de bons compositores que são chamados de storytellers, ou seja, “contadores de histórias”. Craig, 45 anos de idade, é um deles e We All Want The Same Things é seu livro.

É preciso alertar o potencial ouvinte de duas coisas: o álbum é composto e pensado por alguém que viveu uma outra época do planeta. Em algumas décadas, estudos formais de História apontarão o fim dos anos 1980/início dos anos 1990 como um momento de ruptura profunda no mundo, do mesmo jeito que foram a Revolução Francesa ou a tomada de Constantinopla pelos turcos. Podemos dizer que Finn conheceu um outro ritmo de vida cotidiana, uma outra noção de valores. E assistiu perplexo a desconstrução de quase tudo a partir do novo milênio. Não espanta que suas canções sejam pequenas crônicas de personagens que nunca são protagonistas, gente que passa sem ser notada nas multidões, mas que vive, respira e faz parte de uma coletividade. Não são personagens de séries, um parâmetro que muita gente não-americana gosta de achar válido para definir a vida por lá. Finn dá espaço para os coadjuvantes. Sua visão é a de um Bruce Springsteen revisitado, mais entristecido.

Ainda que Craig dê ênfase a valores como amizade, lembranças, carinho, amor e cooperação em suas canções, o clima do álbum é melancólico e reflete uma batalha constante para alcançar essas metas. É como se vivêssemos numa Matrix – analogia perfeita – na qual uma verdade definitiva fosse conhecida por poucos, que tentam enfrentar uma monolítica mentira propagada com fins terríveis, visando a alienação permanente da maioria. Sabemos que é um arquétipo narrativo, mas também sabemos que é real. Craig faz sua parte dando voz a essas pessoas, desfavorecidas pelo senso comum, colocadas à margem por não aceitar qualquer coisa imposta, que pagam o preço disso como “desajustadas”, “rebeldes”, ou algo assim. São valores que despertam identificação em muitos de nós, o que, a meu ver, é um bom sinal.

Não vá pensando que o álbum é 100% narrativa, porque não é. Craig Finn cuidou para que seu talento de melodista se fizesse presente. Há várias melodias memoráveis, que cumprem o papel de embalar e revestir as letras que mostram idas e vindas para a cidade a partir de um tempo na faculdade; amores que se sustentam apenas pela necessidade e como antídoto para a solidão; necessidades extremas que revelam os verdadeiros – e poucos – amigos; perdas materiais diante das circunstâncias ou retornos para paisagens que eram familiares mas que mudaram com o passar do tempo. O single Preludes é um bom exemplo do casamento harmonioso de letra e música, com uma levada animada, bons teclados e um arranjo acima da média. Assim também é Jester & June, unidos por mais coisas em comum do que o simples amor recíproco, com um instrumental que mistura o Folk Rock mais tradicional e alguns toques discretos de efeitos eletrônicos e timbres interessantes. Também merecem muito destaque a assombrosa balada canto-falada God In Chicago e a springsteeniana It Hits When It Hits, que lembra o Boss em 1978.

Craig Finn fez um disco importantíssimo e que deve passar despercebido nas listas de melhores do ano. Talvez ele não tenha gravado essas dez canções com intenção de figurar em listas, mas de exorcizar demônios pessoais, dar voz a gente emudecida em geral. E conseguiu. Ouça com o mínimo de noção de inglês para facilitar seu entendimento das verdades fictícias ditas aqui. Boa viagem.

(We All Want the Same Things em uma música: It Hits When It Hits)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.