Resenhas

Kendrick Lamar – DAMN.

Rapper assume a controvérsia do lugar de destaque que ocupa na música atual

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Ano: 2017
Selo: Top Dawg, Aftermath, Interscope
# Faixas: 14
Estilos: Rap, Hip-Hop
Duração: 54:54
Nota: 4.5
Produção: Anthony "Top Dawg" Tiffith, 9th Wonder, The Alchemist, Bēkon, BadBadNotGood, Cardo, DJ Dahi, Greg Kurstin, James Blake, Mike Will Made It, Ricci Riera, Sounwave, Steve Lacy, Terrace Martin, Tae Beast, Teddy Walton

A História há de reconhecer o movimento ativista Black Lives Matter, organizado em reação ao racismo sistemático da sociedade estadunidense, como um dos acontecimentos sociais mais contundentes dos anos 2010. Reclamando a representatividade da comunidade negra no país, as revoltas norte-americanas pós-2013 instauraram o espírito da época no imaginário da sociedade.

Não por acaso, na música, tal manifestação pôde florescer com vitalidade. E, no protagonismo deste cenário, em meio a um mar de artistas de alto quilate — Beyoncé, D’Angelo e Blood Orange sendo alguns de destaque em um mar de exemplos possíveis — o rapper Kendrick Lamar parece ter sido eleito como uma autoridade no assunto, um porta voz que estabeleceu um novo paradigma na música desses tempos. Seu álbum de 2015, To Pimp a Butterfly, é decisivo não apenas para o próprio, assentando sua carreira definitivamente, como também para a música ao redor de si, adotando uma linha de pensamento que se tornou uma referência sonora. Aquele que ouve To Pimp… é capaz de se reconhecer no trabalho, em seus dramas e em sua potência, mas, mais importante que isso, também se sente reconhecido por ele, e, assim, experimenta a própria capacidade de existir em liberdade. Por isso, é possível reconhecer sua autoridade como uma verdadeira relação política.

Assistir ao contexto de nascimento de DAMN., o quarto álbum completo do artista de Compton, é comprovar como tal autoridade se implantou. Antes mesmo do seu lançamento, pipocavam pela Internet votos de que este seria o melhor álbum do ano. Após o seu lançamento, a mesma vontade de transcendência continuou: o álbum nasceu na sexta feira Santa católica e fãs imaginaram que o artista ainda havia preparado uma surpresa para o domingo de Páscoa, lançando ainda outro trabalho, evocando a ressurreição de Cristo, mesmo que Lamar jamais tenha dito nada a respeito disso.

Tais sintomas são apenas a manifestação de como To Pimp a Butterfly ainda ressoa no imaginário do público. Por isso, ouvir DAMN. é inevitavelmente compará-lo ao seu antecessor e reconhecer que aqui, há uma diferença essencial na personalidade do rapper. Se em To Pimp… foi o público quem concedeu a autoridade de Lamar, agora o artista inverte essa relação e assume o papel de mensageiro controverso e autoritário. Basta olhar para as capas de ambos os trabalhos para evidenciar visualmente as diferenças entre si: no primeiro, Lamar conta com a comunidade à sua volta, despido e praticamente indistinguível dos outros ao seu redor. Em DAMN. o rapper vai falar apenas de si mesmo, figurando sozinho e com um aspecto abatido.

DAMN., além da interjeição de surpresa, tira o seu nome da palavra damnation, a “maldição” do Deus punitivo do antigo testamento sobre aqueles que não o obedecem. É essa a imagem assumida aqui. Lamar é um messias, acima dos homens comuns, que está sendo punido pelos pecados de todos. Metáforas bíblicas sempre foram um tema forte na obra do artista, e aqui não é diferente, o tempo todo a crença cristã vem ilustrar aquilo que o rapper diz. No entanto, uma imagem salta diante das outras, com Lamar ocupando o centro da Santa Ceia no clipe de HUMBLE..

A Santa Ceia é uma figura constantemente evocada no imaginário do Rap, com os artistas ocupando o centro do poder, cercado por seus seguidores. No entanto, é também este episódio bíblico que antecede a traição de Judas, o que pode ser interpretado como o lugar controverso que o rapper ocupa sendo o “líder” do jogo: alguém poderoso, mas com um medo constante de perder o lugar.

HUMBLE., a faixa central, é, de fato, aquela que serve como pilar para o trabalho como um todo, seja tematicamente, visualmente ou, é claro, sonoramente. Nela, o jogo dúbio entre os conceitos de orgulho e humildade é constante, como um oxímoro que não cessa de pregar truques em nossa mente. Enquanto o rapper prega aos outros que sejam humildes, evidentemente abdica de sê-lo.

O videoclipe da faixa também manifesta essas contradições. Lamar esbraveja contra o Photoshop, por exemplo, em um clipe de imagens super tratadas que se aproximam da publicidade (que, aliás, rouba imagens da publicidade) e literalmente usa efeitos especiais em diversos momentos para forjar sua imagem de artista poderoso, que possui algo “mágico” e que os outros desejam, mas não podem ter.

Lamar, como dissemos, em DAMN., é autoritário e controverso. Todos os títulos de suas músicas, assim como o do álbum em si, são maiúsculos e com ponto final, ou seja, são afirmações que pretendem ser definitivas. O trabalho, no entanto, é preenchido por dualidades. BLOOD. e DNA., PRIDE. e HUMBLE., LOVE. e LUST. não são realidades necessariamente contrárias, mas diferentes aspectos de uma coisa só, evidenciando que tudo é mais complexo do que a aparência nos leva a crer.

Musicalmente, o trabalho também é dual. Por um lado, evoca um retorno às raízes primordiais do Hip-Hop, ao lado de Nas ou Tupac, com batidas pungentes acompanhada de melodias simples e que servem como pano de fundo para o Rap eloquente do artista. De outro, Lamar parece querer se aproximar da lado Pop do estilo, aproximando-se competitivamente de Drake, com atmosferas Eletrônicas Downtempo contemporâneas, cantando de modo mais meloso e romântico ao lado de Rihanna ou Zacari.

Já diria o filósofo que o bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinado, enquanto o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo. O constante jogo de tais forças paradoxais, que abdicam do bom senso, é a essência de Kendrick Lamar, um artista que “não faz sentido”. Existe uma diferença abissal entre o rapper que vimos em To Pimp a Butterfly, “escolhido” pelo público, que se reconhece na alteridade da comunidade em que vive, que deixa aflorar aquilo que diz através de sua ausência, e o rapper de DAMN., elevado ao status de “escolhido” por forças divinas. No entanto, essa nova faceta de Kendrick Lamar expõe um humano contraditório, ocupando um lugar instável, assim como todos nós, hora ou outra, acabamos por fazer.

(DAMN. em uma música: HUMBLE.)

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BOM PARA QUEM OUVE: Drake, Tupac, Jay-Z
MARCADORES: Hip-Hop, Ouça, Rap

Autor:

é músico e escreve sobre arte