Resenhas

Curumin – Boca

Quarto álbum do cantor e multiinstrumentista amplia mistura de ritmos

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Ano: 2017
Selo: Natura Musical
# Faixas: 13
Estilos: MPB, Hip Hop, Eletrônica
Duração: 35:30
Nota: 4.0
Produção: Curumin, Zé Nigro, Lucas Martins

A sociedade que gera o Sertanejo Universitário é a mesma que gera Boca, quarto álbum de Curumin. É bom lembrar, porque parecem mundos opostos dissociados. Não seria exagero dizer que o são. O país que parece dançar enfeitiçado por uma tela de algumas dezenas de polegadas não deveria ser capaz de comportar tanta criatividade e capacidade de reagir a este mesmo encantamento. Mas, felizmente, é. Tal postulado leva a discussão sobre Boca para um outro plano, além do estético e isso só cabe em grandes álbuns políticos. Não que Curumin tenha pensado em fazer algum tipo de manifesto em seu mais recente disco, mas a inserção de tantas referências de música brasileira popular, de modo orgânico e com cuidados de produção, além de privilégio dado à criatividade, é, hoje em dia, uma declaração de intenções diante da mesmice. Por isso, novamente digo: a mesma São Paulo dos Sertanejos e derivados também comporta os cronistas do cotidiano injusto, que vivem como esponjas de informação pelas ruas da grande metrópole. Repito: ainda bem.

Com o patrocínio do projeto Natura Musical, Luciano Nakata Albuquerque, o próprio Curumin, produtor, mutiinstrumentista e sujeito antenado, criou este mundo amalgamado de Brasil urbano e periferia latu sensu. Aqui tem Eletrônica de baixo custo e/ou contrabandeada, tristeza pela desigualdade social, pasmaceira diante da falta de oportunidades, pedreiros suicidas, cadeias hereditárias, mangues, terrenos baldios, manos das quebradas, velhos vinis de Jorge Ben comprados por preço bem em conta e o encontro com os manos nas biroscas das quebradas. Tudo isso, de forma inconsciente ou não, está contido no trabalho do músico paulistano e vem à tona em seus álbuns. Talvez tenha atingido um ápice no segundo, o ótimo Japan Pop Show, mas há brilhantismo no seguinte, Arrocha e neste Boca, que propõe uma mistura de sons sintéticos com ritmos negros, sem qualquer obrigação de tornar fácil a audição. Não há melodia Pop em nenhum canto do disco.

Alguns críticos musicais podem reclamar disso, mas, como dissemos lá em cima, discos como Boca vão um pouco além da música. Curumin coloca bem alto o sarrafo de seu salto. Se coloca às vezes como espectador e mensageiro do caos ao mesmo tempo. As composições de convidados, no caso, Russo Passapusso, Boca Pequena Parte 2 e Rico Dalasam, Tramela, se juntam ao painel sonoro erguido no disco com graça e fluidez. É nas parcerias que o álbum concentra a esperança de soar diverso, algo que se concretiza naturalmente no decorrer das faixas, com gente boa como as cantoras Andreia Dias, Anelis Assumpção e Iara Rennó dando o ar da graça e temperando o caldo musical que sai dessa cozinha.

Destaques absolutos: Boca Pequena Parte 1, que tem arranjo de Reggae desvirtuado por batidas eletrônicas noventistas e vocais que se mesclam e viram fraseados Hip Hop no meio de um terreno baldio, com destaque para o verso “entre o trono de rei e o banco de réu, passeia o neo-coronel, cheio de falsas bandeiras, apertando maços de garoupa na carteira, diabinho batucando no ombro, ele samba na cara da sociedade”. Prata, Ferro, Barro tem cadência de Samba, mas com percussão distinta, que comporta cuícas e bateria eletrônica, nada parecido com o usual do estilo. Boca de Groselha é minimalista e Reggae ao mesmo tempo, enquanto Paçoca é um samba totalmente tradicional, com direito a palmas, trombone e clima de terreiro. Não por acaso, ela fecha o álbum com chave de ouro, mostrando origem e verdade.

Boca não é um disco fácil para o ouvinte. Há que perseverar algum tempo para conseguir furar sua casca, mas, uma vez atingido esse estágio, Curumin se dispõe a guiar o aventureiro por um mundo que não traz novidade na configuração, mas que pode oferecer múltiplas interpretações, dependendo de fatores como distância, afinidade, identidade. Um disco sério e muito importante.

(Boca em uma música: Boca Pequena Parte 1)

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BOM PARA QUEM OUVE: Bixiga 70, Kiko Dinucci, Criolo
ARTISTA: Curumin
MARCADORES: Eletrônico, Hip Hop, MPB, Ouça

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.