Resenhas

Desgraça – Ladrão

Trabalho traz crítica dura e bem construída sobre criminalidade brasileira e suas complexidades

Loading

Ano: 2017
Selo: Independente
# Faixas: 10
Estilos: Experimental, Punk, Funk Carioca
Duração: 22:18
Nota: 4.0
Produção: Desgraça

A música denuncia e, muitas vezes, é impiedosa em sua análise. Seja no Rap ríspido e impiedoso de Racionais MCs ou nas ricas metáforas de Chico Buarque e Caetano Veloso durante a ditadura militar, o fato é que a música brasileira construiu em diversos momentos uma relação muito próxima ao objetivo de denunciar as mazelas político-sociais. E mais do que um simples relato jornalístico, por vezes somos surpreendidos com tamanha sensibilidade e maestria que esses artistas têm em nos propiciar retratos densos dos cenários em questão, entrando em méritos psicológicos que trazem uma grande bomba para ser digerida. Desgraça é um projeto que levou esta denuncia a um novo nível. O trio composto por Vitor Brauer (Lupe de Lupe e Xóõ), Felipe Soares (Amandinho) e Rodolfo Lima (Ximbra) se reuniu em Maceió para gravar em cinco dias o que viria ser uma das críticas contemporâneas mais intensas sobre a conjuntura brasileira.

Ladrão é um trabalho que mostra o esforço de compreender ou expressar o complexo quadro da criminalidade no Brasil. Por meio de um disco híbrido que não se preocupa em se enquadrar em gêneros, a obra funciona como uma mostra da multiplicidade desta questão, a partir de uma narrativa que adota diversos pontos de vista sobre uma mesma personagem: o ladrão do título. As texturas nebulosas, a rispidez e crueza dos timbres e as letras violentamente sinceras, entre outros elementos, são as principais ferramentas na construção da análise ácida que motiva esta personagem a criar seus rumos. É interessante notar que parte desta investigação psicológica e social é expressa vividamente pela ausência de formas definidas em suas sonoridades. Em outras palavras, o disco é feliz em trazer este exército de realidades concretas por causa do uso de elementos pouco figurativos e explícitos. A livre interpretação das letras e/ou a percepção das sonoridades caóticas que ouvimos durante o disco são o que fazem com que esta crítica seja tão certeira.

Com intervenções de manchetes de telejornais, o disco abre seu argumento com uma espécie de Black Metal frenético em Vilão, faixa em que somos confrontados com o próprio ladrão se convencendo da validez de seus próprios atos. Amor, por sua vez, é quase uma balada Drone que propõe uma trégua da tendência frenética até agora, como se pudéssemos respirar antes de prosseguir (mesmo que esta respiração seja densa e intoxicada, como a ambientação sugere). Logo depois somos jogados a uma delirante narrativa dentro do tráfico de drogas com desconcertantes intervenções do eu-lírico sobre a insignificância de tudo isso (“Em vão, em vão, em vão”).

Amizade conta entre batidas e timbres tortos uma discussão entre a personagem principal e seu amigo/a, com toques de ambiguidade ao não sabermos quem é que está falando a cada verso proferido. Contrário a isso, Rival é uma explosão de raiva com direito a críticas ao telejornalismo (com citações distorcidas de Datena), epifanias sobre homicídios e, até mesmo, um toque religioso de redenção. Vida traz uma reflexão sobre o passado da personagem, ilustrado com uma batida que vai ficando cada vez mais rápida e confusa, como se isso fosse ficando cada vez menos claro para ela. Completando o ciclo, Herói fecha esta indagação mudando algumas reflexões feitas na primeira faixa, das quais a mais cruel é sem dúvida “O futuro é violento para você e para mim”.

A crítica de Ladrão é dura e necessária. Há poesia nas músicas, mas não no sentido romantizado da coisa. O ciclo da personagem, os diversos pontos de vista, o vocabulário cotidiano são alguns dos elementos que tornam este disco complexo e, até mesmo difícil. Temos certa dúvida em entender as coisas presentes nele de forma direta, mas esta é justamente a intenção do álbum: mostrar que a criminalidade é uma questão plural e que é necessário aprofundamento para compreendermos uma parcela de sua totalidade. Desta forma, temos um trabalho fascinante e cruel.

(Ladrão em uma faixa: Herói)

Loading

BOM PARA QUEM OUVE: Ministry, clipping., Death Grips
ARTISTA: Desgraça

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique