Resenhas

Djonga – O Menino Que Queria Ser Deus

Segundo disco do rapper traz novas dinâmicas musicais e uma luta racional ainda mais latente

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Ano: 2018
Selo: Ceia Ent.
# Faixas: 10
Estilos: Hip Hop
Duração: 39:00
Nota: 4.0
Produção: Coyote Beats

O anúncio do segundo disco de Djonga foi repleto de polêmicas e questões abertas – se o seu nome, O Menino Que Queria Ser Deus, pode parecer mais uma das faces da elevada e justa autoestima do rapper mineiro, além de brincar com a religiosidade alheia, ele também continha o subtítulo: “2017 foi o melhor e o pior ano da minha vida”. A dualidade entre o reconhecimento e fama tomados por assalto através de sua primeira Heresia carrega também o peso e responsabilidades de um “sujeito homem” que agora se tornou uma pessoa pública, um alvo facilmente exposto devido à falta de pudor de suas palavras.

Em um contexto em que a luta racial no Brasil nunca se mostrou tão latente e gritante por conta da morte da vereadora carioca Marielle Franco – defensora dos direitos humanos, mas, acima de tudo, representante política negra em um contexto sempre monocromático nas altas elites brasileiras -, Djonga é ainda mais necessário. Seu primeiro disco, Heresia, foi o grito desesperado de uma vida inteira marcada por preconceitos, racismo e “planos de carreira” bem estabelecidos – seu destino de se tornar apenas mais uma mão-de-obra subutilizada, mal paga e pouco reconhecida foi virado para baixo. Acima de tudo, foi uma transformação feita a partir da retomada da voz negra enquanto potência de protesto, escolha distinta da busca atual no Hip Hop em que tais questões parecem distantes como Mano Brown aborda nesta entrevista.

Ouça, por exemplo, Olho de Tigre ou Esquimó- faixas anteriores a este trabalho -, caso você desconheça o rapper, para entender como tais questões são abordadas dentro de sua obra. Longe de perder tal impulsividade e resistência, Djonga se transformou em seu segundo disco. Enquanto Heresia foi feito na correria, O Menino Que Queria Ser Deus é o seu primeiro disco bem pensado, ambicioso, maduro e trabalhado nos detalhes. Isso é perceptível do começo ao fim ao mostrar uma cadência distinta, menos agressiva em alguns momentos e que sabe explorar a voz do rapper mineiro de outras maneiras.

Alguns gritos se transformam em melodia, o Funk – principal referência musical para Djonga – surge como o principal gênero abordado no disco e mostra que o rapper está fugindo dos referenciais estrangeiros quando cria o seu Hip Hop. Atípico tem um refrão que tocará nos bailes pelo Brasil – sua letra é uma navalha que corta a pele branca e expõe a sua culpa histórica diante dos negros. A abertura coloca-se a par dos melhores momentos de Heresia e choca.

Se o título coloca a sua vontade de ser Deus, as composições colocam-se como extremamente humanas; põe Gustavo como um ser que sabe que erra e acerta. Ufa expõe seu novo estilo de vida com roupas caras sendo compradas e uma suposta futilidade, “não cuspa no prato que você come” conflita com a conquista financeira no fluxo de ideias – mostra que a mudança de vida foi mais rápida do que o esperado e revela o peso de suas escolhas e transformações. 1010 coloca a mulher como objeto de desejo, ao mesmo tempo em que demonstra seu respeito pelas mulheres de forma geral em Canção pro meu Filho. Os conflitos quase paradoxais de Djonga é que trazem um sentido a obra como um todo: como Deus, ele é acima de tudo um ser com vontade da criação através de sua arte, criação como forma de transformação de um sujeito fadado à vala que teve um destino diferente.

1010 acaba com uma carta escrita por Tupac para Madonna explicando o porquê do término do seu relacionamento: estar com uma mulher branca era uma desfeita para toda a sociedade negra que o colocou no patamar que ele havia alçando – dentro do disco coloca-se como um compromisso do rapper para nunca fugir de suas origens e luta.

A luta racial é retomada com esplendor em uma das melhores composições de sua carreira, Corra. Assim como o filme lançado em 2017 que tem a temática racial como tema central, a canção é uma aula de história sob o olhar de Djonga, compartilhado por negros pelo país e pelo mundo – são tantos versos ricos que é difícil escolher algum que se sobressaia. Talvez esta resenha pudesse ser somente a letra completa de Corra para mostrar o quanto O Menino Que Queria Ser Deus é fundamental em 2018.

Sem esquecer das participações especiais: Karol Conká brilha na futurista Estouro, enquanto Sudoka e Sant roubam a cena em UFA. De Lá e Eterno são momentos surpreendentes na carreira de Gustavo, mostrando que ainda não chegamos na ponta do iceberg de suas variáveis artísticas – a primeira é uma ode aos cancioneiros mineiros, enquanto a segunda é a balada que parece romper as barreiras de quem o considera um rapper “que grita”. Seu refrão é um lindo Funk de raiz feito com samples vaporizados.

Se Heresia desejava desesperadamente contar a vida de Gustavo e explicar como ele chegou diante do microfone, O Menino Que Queria ser Deus demonstra o desejo ambicioso de um rapper de se tornar eterno. Para Djonga, não importa se esse será o disco do ano ou não, mas sim se era uma parte fundamental de um artista criativo e criacionista que deseja através de sua voz expor as diferentes realidades dentro do Brasil. O racismo existe no cotidiano e enquanto o rapper continuar versando, a ferida e a luta constante continuarão cada vez mais expostas.

(O Menino Que Queria ser Deus em uma música: Atípico)

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BOM PARA QUEM OUVE: BK, niLL, Racionais MCs
ARTISTA: Djonga
MARCADORES: Hip-Hop, Ouça

Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.