Resenhas

Daft Punk – Random Access Memories

Robôs trazem forte influência do Groove e Soul dos anos 70 para quarto álbum de estúdio como forma de trazer vida à música

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Ano: 2013
Selo: Columbia
# Faixas: 13
Estilos: Soul, Jazz, French Electro
Duração: 74
Nota: 4.5
Produção: Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo

Like the legend of the Phoenix”, Daft Punk tenta ressurgir com uma proposta arriscada e (quase que) inédita. A frase, do primeiro single Get Lucky – que lembra o loop de Voyager (Discovery, 2001) -, representa bem o desgosto dos robôs para com a falta de compromisso dos produtores eletrônicos de hoje. A tecnologia trouxe facilidade e comodismo para essa nova leva: o software é o mesmo, os pacotes são os mesmos e tudo é feito de forma tão genérica – nos saguões de aeroportos ou quartos de hotel – que falta uma identidade, uma assinatura, algo que prove que cada produtor tem sua essência. Baseando-se nisso, Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo trazem uma compilação de treze faixas resgatando o ser humano diante de tanta máquina, a emoção diante de tantos packs, os robôs de volta pra humanidade. Random Access Memories é exatamente sobre isso: apelo pela mistura do que hoje é tão tênue entre o coração e o disco rígido.

Quase duas semanas do lançamento oficial, o vazamento de RAM virou assunto na internet e o impulso falou mais alto para entrar em contato com a próxima lição de casa. Os discos do Daft Punk se tornaram uma referência de como a indústria fonográfica deve caminhar e isso deu um título a eles de “professores de tendências.” Os oito anos depois do último lançamento da dupla implicam um certo perfeccionismo diante da proposta que o mundo merece. Foi quase uma década de espera para ouvir as faixas que servirão de referência para as próximas, e o cuidado (e respeito) que cada um impõe a esses trabalhos é o mesmo de quem bota o Random Access Memories no pedestal. No lugar onde ele não deve sair.

Tendo a crítica ao EDM como feita, Daft Punk dá alguns passos pra trás onde o orgânico conquistava, dominava almas por todo o mundo e tinha seu espaço, mesmo sem os feitos da Internet. RAM soa como um resgate do “Soul” a uma geração que está fordista e não percebe isso. Give Life Back To Music (teria nome melhor que esse?) dá início ao álbum e serve como resumo da lição. A música é instável e mistura momentos de euforia com riffs típicos do French Electro, onde há uma progressão que facilmente poderia dar espaço a uma estrutura eletrônica como ouvimos em Aerodynamic (Discovery, 2001). O interessante é que os tímidos mostram sua cara (ou capacete) aí. O Groove de Nile Rodgers dá o ar mais intimista e humano à faixa com o Groove “Chic” do final dos anos 70, enquanto o sample robótico soa como súplica de mudança.

Quem mais se frustrou e entrou pro time de críticas negativas em cima de RAM foi quem esperava um álbum condizente com os outros em termo de estrutura. Quem se impressionou foi quem esperava um álbum condizente com a proposta. Desde o lançamento de Get Lucky já estava implícito que o eletrônico não teria tanto espaço quanto Nos trabalhos anteriores. A proposta é, e sempre foi, inovação. Não dá pra se prever o que está na cabeça deles. Sabe-se, porém, que se trata de uma obra muito a frente de seu tempo, que tem que ser analisada tomando a proposta como ponto inicial e criticando a partir disso. Cavamos um pouco mais, e achamos robôs que já sentem. The Game of Love parece ter sido uma versão Daftpunkeana de uma faixa do In Our Heads (Hot Chip, 2012), tanto na densidade quanto no tom do Alexis Taylor, tanto na estrutura quanto no conteúdo. Fala do medo da distância, da dor da perda e da súplica que causa o choro, “I just wanted you to stay”. O tom é o mesmo com Within. Chilly Gonzales exprime, com o piano, a tristeza e frustração de uma alma perdida. Mais uma música que humaniza os robôs de forma sutil, idealizada e emocionante.

E nessa ousadia do conceito, chegamos em Giorgio by Moroder, a famosa faixa que trata da história do produtor com a música. Dois aspectos trazem singularidade à ela. São dois minutos iniciais com a narração de Giorgio (que quebraria qualquer noção de pista) que evolui para o que estávamos habituados em ouvir nos últimos álbuns. A faixa, na sua metade, amacia-se para um Jazz com elementos de piano, até voltar sua estrutura que se estende por nada menos que nove minutos. Muito conceito para uma faixa só? De forma alguma. Diferente de Lose yourself to Dance, que tem somente cinco minutos (e facilmente poderia ter três), aqui se tem uma progressão incrível com bateria (ganhando inclusive um solo) chegando ao seu clímax nos últimos 20 segundos. Instant Crush é a aproximação e distância, ao mesmo tempo, causada por Julian Casablancas. O vocalista dos Strokes ganha uma dose significativa de vocoder para ilustrar uma canção que ora se assemelha a uma baladinha de sua banda, ora lembra o por quê de Julian não apelar para o melódico geralmente.

O álbum todo se completa como uma narrativa só, em que as faixas vão dando suporte umas as outras com objetivo de passar uma mensagem em conjunto. Essa busca incessante pelo âmago, dando importância aos elementos orgânicos, traz uma sensação incrível de vida, causando aquela ideia leiga de sentir que a música está completa e faz parte da trilha sonora de sua vida há anos. Vindo de artistas que pensam milimetricamente em cada nota, os dois controlam como marionetes seus ouvintes, levando-os para quaisquer explosões sentimentais que eles quiserem. RAM nos conduz do sentimento à euforia, da emoção ao sono. Assim, como o despertar de um REM, Touch serve como uma ponte sólida para a necessidade de algo palpável (“I need something more in my mind”) como o sentimento. O contato (como dá o nome ao título) com esse mundo novo desperta tantas novas sensações que são exatamente o que eu, como ouvinte, senti ao perceber que ouvia trompetes e piano em meio a uma estrutura típico do Daft Punk. A faixa desabrocha e retrai com os minutos, assim como a insegurança dos versos. Mas a surpresa vem na segunda metade da música, quando um coral se mistura a violinos até uma abrupta mudança, como se a canção tivesse início pela segunda vez ou acordasse de um desejo muito profundo. A temática continua com Beyond, a segunda faixa sem colaboração. Aqui se lembra muito a veia cinematográfica que o Daft Punk trouxe com Tron. O início magestral-audiovisual cai no loop de um riff setentista com vocoder para conteúdo existencialista. “Dream/Beyond Dream/Beyond Life/You will find you song” exprime a dificuldade de se criar a “canção perfeita”, da necessidade de cavar, de ir fundo para encontrar a alma. E a dupla dá ênfase: “There’s no such thing as competition/To find a way we lose control/Remember love’s our only mission /This is the journey of the soul”.

Motherboard, terceira e última faixa sem colaboração, é uma peça instrumental com a mensagem de ser algo puramente sintetizado que, através de notas no violão e violino, contém vida. Fragments of Time dá um tempo na proposta e mostra a leveza da diversão voltando aos anos 80 com Todd Edwards. Já quase se despedindo, nos deparamos com um dos projetos mais viscerais da música atual, Animal Collective. Panda Bear empresta sua voz para sobrepor os samples robóticos do Daft Punk em Doin’ it Right. O título critica também o vazio dos projetos eletrônicos atuais e afirmam que, se fizer direito, todo mundo dançará do mesmo jeito. A ida ao estúdio e contato analógico para construção de um álbum que ovaciona a produção de músicas com vida tem uma só finalidade: “If you lose your way tonight, that’s how you know the magic’s right”. Contact* é o desfecho Post-Rock de seis minutos que causa uma catarse resultante de uma progressão durante a segunda metade da música.

Random Access Memories são 74 minutos de epifania musical. Eu, particularmente, me assustei bastante quando ouvi Get Lucky pela primeira vez. Me frustrei como fã daquele Daft Punk que deu aula de música eletrônica lá trás. Não entendi a razão de tanto barulho em cima de um loop de quatro minutos e torci para que tivesse sido só uma entre outras faixas que me surpreenderiam. O fato é que o Daft Punk nunca se repete e aí que mora o ouro. Ouvindo RAM, a dúvida de melhor faixa se manteve até a décima terceira. É um álbum que conduz seu ouvinte confortavelmente a diversas sensações e evoca a vivacidade dentro dele. Há quem critique pela falta de uma estrutura eletrônica (que se anula pela proposta inovadora) ou pela aleatoriedade musical. Mas talvez este seja o objetivo. Com um elenco escolhido a dedo, as participações foram fruto de homenagens a tanto aqueles que ajudaram a fazer a história da música, como àqueles que estão fazendo história de hoje para o futuro. Sendo assim, eu prefiro pontuar como negativo alguns trechos que são desnecessários e que poderiam ser cortados para ajudar na dinamicidade do álbum, como na terceira e sexta faixas.

De qualquer forma, temos um álbum com tanto movimento quanto os anteriores. Frustrados que me perdoem, mas Daft Punk subiu de patamar, saiu de sua zona (ou cabine?) de conforto e ensinou como se faz. De novo. Um trabalho com faixas single, faixas conceituais, dançantes e introspectivas. O French House teve seu espaço nos sintetizadores, ficou ao lado do Groove e do Jazz (com guitarras, trompetes e pianos) e mostrou fortes influências do Post-Rock com a bateria e percussão. Mostrou de forma orgânica, original e analógica como trazer vida à música. Como não sintetizar isso tudo com um adjetivo que não, completo? Quanta ironia! Robôs perceberem superficialidade e ensinarem humanos como se produz música com vida. Enquanto muitos correm em direção à tecnologia para se atualizarem, os franceses ensinam o caminho contrário, do encontro do artista com o estúdio, do contato com os instrumentos, da imperfeição benéfica e original que o computador não dá. Daft Punk ensinou uma lição ao planeta. Enquanto isso, a gente vai aprendendo que é possível ter música que misture emoção e sintetizadores e o mais importante: alma e dança.

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BOM PARA QUEM OUVE: soulwax, Justice, Hot Chip
ARTISTA: Daft Punk
MARCADORES: French Electro, Jazz, Ouça, Soul

Autor:

Publicitário que não sabe o que consome mais: música, jornalismo ou Burger King